Artigo | Em que horas você descansa?

“O capital cada vez mais se apropria do nosso tempo de vida.” Foto: Junior Lima

Texto de Ezequiela Scapini, militante do Movimento Brasil Popular e Doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp

“Quantas horas trabalha? Que horas vai dormir? O senhor vai ao cinema? O que você faz no final de semana? Que horas você ama? Que horas você acordou? Quantas horas trabalhou?” As perguntas feitas pelo personagem Calunga no filme A grande cidade continuam tão presentes quanto em 1966, ano em que o filme foi lançado. E respondê-las nos leva a conclusão: sobra pouco, talvez quase nada para a vida além do trabalho. A importância da redução da jornada e de definir uma escala para a jornada de trabalho é uma decisão, mais que econômica, política. E serve a dois propósitos: impor limites à exploração por parte do empregador e resguardar o corpo e a vida de quem trabalha, já que ambos, como sabemos, são finitos. 

Ainda que legalmente a jornada de trabalho seja de esdrúxulas 44 horas semanais na escala 6×1 desde a Constituição de 1988, a heterogeneidade do mercado de trabalho brasileiro, marcado pela precarização e informalidade estrutural, faz com que tenhamos jornadas ainda mais absurdas, despadronizadas e acima do limite legal, seja em postos formais ou informais. Com o avanço do neoliberalismo e a retirada de direitos trabalhistas, muitas formas de aumentar o tempo de trabalho nas suas três dimensões – extensão, distribuição e intensidade – passaram a ser utilizadas, com o intuito de garantir e se apropriar cada vez mais do tempo de vida do trabalhador.  Nesse momento em que escrevo, percorre a notícia de que trabalhadores da rede de supermercado Zaffari, trabalham na inimaginável e inconstitucional escala 10×1.

O resultado da nossa última Constituição em que a classe trabalhadora não conquistou as 40 horas semanais, mas que também não levamos as 48 horas que queriam os empresários, agora é retomado pelos trabalhadores mais precarizados. Vale dizer que a distribuição da jornada e da escala de trabalho difere conforme os setores de atividade econômica e também conforme a região do país. É nesse sentido que, ainda que a média da jornada de trabalho semanal seja de 39 horas no Brasil, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 32 milhões de trabalhadores formais trabalham mais de 40 horas semanais, de acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS).

As mais extensas jornadas são encontradas no ramos do comércio, de hotéis e restaurantes, de transporte, de armazenamento, de comunicações e de segurança. Mas há casos como o do setor de saúde que jornadas de 36 horas semanais são realizadas em escalas de 6×1 com jornada de seis horas e em escalas de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso. Ainda que a jornada seja reduzida, a forma como a escala de trabalho está organizada também impacta na vida e na saúde de tais trabalhadores. Contudo, A Pesquisa Do Perfil Da Enfermagem No Brasil aponta que 40% das enfermeiras e 36% das técnicas e auxiliares do país trabalham mais de 40 horas semanais. 

Não são poucos os dados que nos mostram a situação gritante de vida desses trabalhadores. Entre 2007 e 2022, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação computou que o SUS atendeu quase 3 milhões de casos de doenças ocupacionais, sendo 52,9% considerados acidentes de trabalho graves. Em 2022, mais de 209 mil trabalhadores foram afastadas do trabalho por transtornos mentais, segundo dados do INSS. Já a pesquisa Panorama da situação de saúde de jovens brasileiros, feita pela Fiocruz, concluiu que  a juventude é a mais exposta aos acidentes de trabalho, tendo como causa primeira as condições de trabalho.

Também não são poucos os relatos nas redes sociais de quem sente na pele o que é trabalhar na escala 6×1: “Minha mãe trabalha 6×1. Sai às 4:30 de casa para poder bater o ponto às 6:00 porque a rota da empresa passa praticamente na cidade toda. Sai às 14:40, chega em casa quase 16:00 (aos sábados também). Domingo vocês acham que ela quer passear? Quer viver?”. Esse é somente um dos relatos entre os milhões de trabalhadores precarizados da escala 6×1 e, lembremos, há ainda quase 40% de trabalhadores na informalidade, sem acesso a nenhum direito trabalhista. 

Assim, ainda que a taxa de desemprego tenha atingido o patamar mais baixo desde 2012, com 6,2% (PNADC, 2024) é preciso considerar a qualidade dos empregos ofertados. As políticas neoliberais, como a Reforma Trabalhista de 2017 e mais uma série de mecanismos legislativos e jurídicos contribuíram para tornar, até mesmo, o emprego formal em emprego precarizado. Por isso, a pauta do trabalho está mais viva do que nunca. Talvez dessa maneira, conseguiremos entender o porquê, mesmo com o avanço da economia brasileira, a população não sinta tais melhorias em suas vidas. O que antes levava muitos de nós a acreditar que a pauta da redução da jornada não mobilizava os trabalhadores, surge como demanda real da classe trabalhadora, há muito tempo na defensiva. Surge como reação aos anos de retrocesso das políticas para o mundo do trabalho. 

Por isso, nos perguntarmos em que momento e por quanto tempo nós, trabalhadores, descansamos, não é uma pergunta menor. É um mito bem orquestrado pela direita e pelos empresários de que o povo brasileiro trabalha pouco e que é pouco produtivo. Na verdade, o aumento da produtividade não foi acompanhado pela redução da jornada de trabalho. Vale lembrar, que até mesmo os Estados Unidos possuem uma jornada de 40 horas semanais e países como a França de 35 horas semanais. O capital cada vez mais se apropria do nosso tempo de vida, cabe a nós lutar por uma vida além do trabalho.

Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular