Para Ana Penido, o golpe do 8 de janeiro não aconteceu porque não havia consenso entre militares. Foto: Joedson Alves/Agência Brasil
A investigação da Polícia Federal (PF) que desmascarou o plano de golpe de Estado no país após a eleição de Lula (PT) em 2022 reacendeu o debate na sociedade sobre a participação das Forças Armadas brasileiras em eventos golpistas.
Entre os 37 indiciados pela PF por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa, a maioria são militares. A lista também inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Alexandre Ramagem e Valdemar Costa Neto.
Para entender sobre o cenário que se abre após a investigação, o histórico da participação militar em tentativas de golpes no Brasil, as disputas internas do Exército e os desafios para a transformação da política de defesa do país, conversamos com Ana Penido, cientista social, com mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorado em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas.
“O golpe é só o momento mais espetacular da participação política das Forças Armadas. Tem que olhar e mexer nas continuidades. Entram governos de esquerda e de direita e os militares continuam lá”, chama a atenção.
Leia a entrevista completa:
Os militares têm um histórico golpista no Brasil?
Ana Penido – O golpe é só o momento mais espetacular da participação política das Forças Armadas. Quando o golpe acontece, ele pode dar certo ou pode dar errado, tanto faz. Mas ele só acontece porque a participação dos militares na política foi consentida pelo Poder Civil.
Vejamos um exemplo básico, a chantagem: “eu só vou topar essa missão de operação de Garantia da Lei da Ordem, se vocês aprovarem o excludente de licitude. Eu só vou ser julgado por outros militares”. Isso é o quê? Isso é chantagem, isso é barganha.É questionar o poder político para que as forças militares tenham que ser empregadas.
Então, o golpe é só um momento extraordinário. Não adianta a gente enfrentar um golpe olhando para um momento extraordinário. Tem que olhar para essas continuidades. E ninguém mexeu nessas continuidades ainda. Entrou um governo de esquerda, entrou um governo de direita, saiu um governo de esquerda, saiu um governado de direita, e as Forças Armadas estavam lá, como elas sempre estiveram.
Uma segunda dimensão é que essa ideia de anistia é equivocada. Nem sempre os golpes “deram em pizza”. Eles só acabam em pizza quando eles são feitos por motivações à direita no espectro político e coordenados pelas altas patentes. Quando as insurreições militares foram à esquerda, nós vimos punições duríssimas. Não aconteceu anistia. Até hoje, a Justiça Militar é extremamente punitiva quando se olha para as baixas patentes. Só “dá em pizza” quando você é de direita e quando você é patente alta.
Agora, com relação ao histórico, os militares são o aparato coercitivo do Estado e não é possível dar um golpe sem militares. Todas as tentativas de tomada do poder na história do Brasil envolviam militares. Mas, por outro lado, militares sozinhos não dão golpes.
Militares necessariamente constroem alianças ou com a elite civil ou com a elite de outros estados nacionais, no caso do Brasil, principalmente com os Estados Unidos. Nunca é uma coisa exclusiva do segmento militar. Uma lacuna que a gente tem que analisar é quem financiou. Militar não é bobo, ninguém tenta um golpe militar sem combinar com quem paga. De onde vem esse financiamento?
Qual seria o cenário se o golpe tivesse se efetivado?
Ana Penido – Golpe é igual guerra. Você sabe como começa, mas você não sabe como termina. É muito difícil planejar um cenário. Tem um aspecto que eu chamaria a atenção: nos documentos, é super dissonante a dimensão de como seria a reação ao golpe.
Você vai ver declarações de militares projetando uma guerra civil. E você vai ter declarações de militares falando que não ia acontecer rigorosamente nada, só um funeral bonito.
Então, é impossível projetar o que teria acontecido “se tivesse dado certo”. Eles projetaram a instalação de um gabinete de crise com diferentes ramos. Eles próprios projetaram o ramo que ia conversar com o Judiciário, o ramo que ia conversar com com o Legislativo, o ramo que é responsável pelas relações com a imprensa e o que é responsável pela dinâmica internacional.
Mas quem ia pagar essa conta não está no documento. Quem de fato estava conversando com os financiadores não está no documento, mas eles projetaram a instalação do gabinete de crise bem completo.
Pelo o que eu estou observando, a tendência é de que seria um funeral bonito. Porque o comportamento da esquerda está sendo “por a cerveja para gelar”. A punição do Bolsonaro não vai ser jurídica, vai ser política.
Ele é um quadro político que teve 58 milhões de votos. A gente acabou de sair de uma eleição municipal em que a esquerda foi derrotada. O Trump acabou de ser eleito nos Estados Unidos. Estou brincando com o povo que está colocando cerveja para gelar porque ela vai empedrar. Não é assim que funciona a luta política, muito menos contra o fascismo.
E por que você acredita que o golpe não foi adiante?
Ana Penido – A minha hipótese é de que deu errado porque não havia consenso dentro do Alto Comando das Forças Armadas e também porque o Bolsonaro não assumiu a responsabilidade. Tem uma dimensão institucional, mas sabe aquela coisa do “papel do indivíduo na história”? Normalmente, é uma pessoa que vai puxar as coisas e a gente não viu isso no Brasil em momento nenhum.
Pelo contrário, os nossos militares fazem de tudo para se desvincular das coisas que aconteceram.
Por quais motivos não existe essa coesão no Exército?
Ana Penido – São muitas variáveis, que vão desde disputas internas até a influência dos Estados Unidos. O custo da divergência para um militar é muito alto. Era um cenário em que cinco pessoas, pelo que eles próprios estão falando, foram contra o golpe.
Mas tem uma outra questão relevante. Ser contra um golpe de Estado não significa ser a favor da democracia e muito menos ser a favor de um governo do presidente Lula. Ser contra um golpe de Estado, muitas vezes, pode ser parte de um cálculo de como preservar a sua instituição.
Em 1964, eles deram golpe junto com um monte de gente. Um monte de gente cresceu durante a ditadura militar. Mas passou 1988 e começou a ficar feio. Antes do Bolsonaro vir, era feio você declarar que era a favor da ditadura. Mesmo quem era a favor, ficava quieto, caladinho, na moita.
A imprensa soltou editoriais pedindo desculpa. Tem uma dimensão de proteção institucional de alguns comandantes que falaram: “olha, vai sobrar para o Exército, esse negócio aqui não vale a pena”.
Quais são os caminhos para que as Forças Armadas do Brasil passem por uma reforma, no sentido de desfacistizá-las?
Ana Penido – O caminho jurídico é o que a gente está observando. Investigar, levantar provas e punir os militares que têm de fato envolvimento, seja na tentativa de golpe do 8 de janeiro, seja nesse plano de assasinato do Lula e do Alexandre Moraes.
Na dimensão política, estamos diante de um cenário muito difícil, porque qualquer mudança nas Forças Armadas depende de força social. E não existe um grande movimento social que paute mudanças nas Forças Armadas.
Discutir Forças Armadas é discutir poder. Isso, de forma geral, está longe da agenda das organizações da esquerda e da direita. De forma geral, as pessoas discutem a curto prazo. As Forças Armadas são uma dimensão de longo prazo. Não vejo por parte do Lula uma predisposição para fazer mudanças. Ele tem feito a opção pela conciliação. Ainda que os militares não queiram conciliar com ele, o governo segue tentando conciliar e acho que a maior prova disso é a indicação do Múcio para ministro.
O que nos cabe nesse cenário, que não é bom, são duas coisas. Uma é tirar o tema das discussões sobre Forças Armadas de uma esfera que é quase inatingível. É algo tratado como se fosse muito absurdo fazer mudança.
A Alemanha fechou uma unidade militar suspeita de infiltração nazista e atribuiu às próprias forças militares alemãs a reforma do restante dessa unidade, que também tinha suspeita de infiltração.
Nesse sentido, por exemplo, me chama a atenção que todas as denúncias envolvam o mesmo grupo, que são os kids pretos dentro do exército. Alguma coisa tem aí. Não quer dizer que, num universo de 1 milhão de militares, todo mundo seja golpista. Ser conservador é diferente de ser golpista.
Aqui nós estamos falando sobre quem se dispõe a pegar em armas para impor sua vontade. Não é realista pensar que 1 milhão de pessoas tem esse posicionamento.
Qual é a importância de refletir sobre essa reforma nos dias de hoje?
Ana Penido – Estamos num momento da geopolítica global em que a política de defesa é muito importante. A guerra na Ucrânia está lá, até hoje, se prorrogando. Estamos na véspera possivelmente de uma Terceira Guerra Mundial, com a possibilidade de uso de armamento nuclear.
Há um genocídio em curso. Então, a política de defesa é fundamental. Ter Forças Armadas é central para um país que queira deixar de ser periferia no mundo. É possível e pertinente que o governo convoque uma conferência de defesa, para discutir reforma militar. A lógica do “pune um, pune outro” não tem grandes efeitos.
O que precisamos, na verdade, é pensar qual é a política de defesa pertinente para o Brasil, dado esse cenário político global. Mobilizar Forças Armadas e sociedade civil, industriais, militantes de movimentos sociais, etc, para pensar qual é a melhor forma de defender o nosso país e construir pontes.
A maior receita contra o golpismo militar é fazer com que militares e o restante da sociedade conversem o tempo todo. Uma das receitas para o golpismo é o que algumas pessoas chamam de “nação dentro da nação”. Os militares não conversam com ninguém.
A principal receita anti-golpismo é fazer com que diferentes grupos, com diferentes pontos de vista, tenham que conversar. E qual é o tema em comum que esses diferentes grupos têm? A defesa do Brasil.
Qual é a possibilidade da anistia dos golpistas do 8 de janeiro acontecer e do Bolsonaro deixar de ser inelegível?
Ana Penido – O termo golpismo é muito genérico e dialoga com outro termo genérico que é democracia. Eu acho que os últimos episódios nos ajudam a trabalhar em termos de educação popular com a população. Não estamos defendendo a democracia no abstrato. O que vimos, em termos de denúncia, são questões muito concretas.
Você deixa de falar “Bolsonaro ameaça a democracia” para dizer “Bolsonaro levantou que precisava de uma lista de armamentos e ele ia envenenar o presidente eleito”. Isso significa ameaça à democracia.
Acredito que esses últimos planos dão uma dimensão tático-operacional que é difícil de deixar de lado, porque dá uma materialidade muito grande. A Polícia Federal fez um trabalho de levantamento de provas. E deveria de fato ser assim, porque é preciso ter muita coisa para sustentar uma acusação de uma figura política que tem amplo respaldo popular, como é o caso do Bolsonaro.
Além disso, estamos vendo no Brasil e no mundo o crescimento de uma extrema direita para a qual as regras do jogo não fazem muito sentido. Por isso, que golpe também não faz muito sentido. Eles defendem a ruptura publicamente. Você passa a ter a possibilidade do emprego da violência como ferramenta de imposição da sua vontade política. É outro jogo mesmo. Não é esse jogo liberais versus democratas versus esquerda progressista.
Você coloca a possibilidade de uso da violência na mesa. Veio à tona o plano do assassinato, mas tivemos torres de energia sendo explodidas, ameaça de bomba em aeroporto na véspera de Natal, o bolsonarista de Brasília explodindo vestido de coringa. Tem um conjunto de dimensões que estão fora da política e estão numa dimensão do emprego de força.
O Congresso é reativo às pressões sociais. Pouco reativo, inclusive. E é um Congresso extremamente ruim. Então, tem dois cálculos sendo feitos. O cálculo de Bolsonaro, no sentido de avaliar se é possível substituí-lo por outra figura da direita que seja mais fácil, e o cálculo sobre o que ele vai topar negociar. O que ele vai pôr na mesa como contrapartida?
Eu acho que a direita, neste momento, está fazendo esses cálculos, levando em consideração qual é a melhor chance para eles em 2026. Tanto sobre nomes que estão colocados na mesa — o Tarcísio, o Caiado, os próprios [filhos do] Bolsonaro —, quanto da própria resistência ou não da figura do Bolsonaro.
A anistia, em termos políticos, deveria ser um momento bom para conseguirmos empreender uma ofensiva. Não faz sentido discutir anistia para crimes que envolvem a ameaça de uso da violência na política.
Está previsto de os militares entrarem no teto de gastos promovido por Fernando Haddad. Você acredita que isso influenciará de alguma forma nas movimentações das Forças Armadas?
Ana Penido – Não afeta quase nada. Sobre o orçamento, o problema é que temos, no Brasil, o orçamento de defesa praticamente todo comprometido com o orçamento dos recursos humanos para defesa. Falando no português claro: quase todo o dinheiro que vai para defesa vai para o pagamento de militar, ou de família de militar, ou de militar que está na reserva.
Os cortes que o Haddad combinou com o Ministério da Defesa estão todos na dimensão de pessoal. Em alguma medida, eles vão tocar privilégios históricos que militares têm. Como eles controlaram a transição, eles controlaram inclusive que eles mantivessem certos privilégios.
Acho que são medidas relevantes na lógica do teto de gastos, mas impactam muito pouco na política de defesa, ou mesmo na carreira. O que eu acho que precisaria impactar na política de defesa é essa discussão sobre defesa nacional. Porque aí você deixa de enxugar o gelo.
Uma parte considerável do orçamento é para manter unidades militares na fronteira. Faz sentido isso do ponto de vista da defesa nacional? Não faria mais sentido investir em tecnologia e fazer, por exemplo, o controle por satélite? É um exemplo.
O governo Lula, na verdade, vai com problemas de orçamento para além desses, porque o Bolsonaro ofereceu vários ganhos para as altas patentes e as patentes mais baixas estão reivindicando isonomia. Então, o Lula está com essa batata quente no colo. É um cenário complexo.
Qual é a aceitação das Forças Armadas do Brasil na sociedade atualmente?
Ana Penido – Não temos pesquisas recentes de opinião sobre o assunto. Os últimos levantamentos foram publicados depois da tentativa de golpe. Saíram algumas coisas no início de 2023, que podemos levar em consideração.
As Forças Armadas são, historicamente, uma das instituições com maior influência na sociedade civil. Elas disputam com a Igreja as primeiras colocações entre as instituições que têm confiança. Isso é estranho. Agora, a grande questão é perguntar por que as pessoas confiam nessas instituições.
A confiabilidade das Forças Armadas está muito associada às múltiplas tarefas de agências civis que elas acabam fazendo. O cidadão comum gosta das Forças Armadas, porque eles constroem estradas, fazem transporte de órgãos, eventualmente levam água em algum lugar que não tem acesso, entre outros. É principalmente porque eles acabam cumprindo tarefas que outras agências estatais fragilizadas não cumprem.
Durante o governo Bolsonaro, foi a primeira vez em que a gente começou a ver um declínio na opinião pública desse status das Forças Armadas. Quase todas as vezes em que estourava um escândalo de corrupção, isso aparecia em alguma medida nas pesquisas de opinião. Não é que também as pessoas deixaram de gostar dos militares por y ou por z. É porque passou a fazer parte do repertório um conjunto de coisas que os militares já faziam, mas que não eram de conhecimento das pessoas.
Hoje em dia, por exemplo, você não tem nenhuma pessoa que não tenha raiva das pensões. Mas nem todo mundo sabia que isso existia. Então, os militares, quando vão para a política, também vão para a vitrine. Eles passam a ser observados pela população. Essa é a segunda fase.
A terceira e última fase, foi após dia 8 de janeiro de 2023, um conjunto de cidadãos brasileiros queriam que os militares dessem um golpe, um golpe aberto. Algumas postagens do Exército passaram até ser fechadas. Porque toda vez que tinha uma postagem do Exército, imediatamente, um bando de gente ia criticar, com comentários como “vocês tinham que ter dado o golpe”.
Daí, houve uma queda na opinião pública, tanto entre uma opinião pública mais crítica, que vai ser crítica ao que foi, por exemplo, a ida dos militares para o governo, quanto da opinião pública mais à extrema direita, que vai achar que os militares não foram golpistas o suficiente. Há então, na verdade, reflexos na imagem institucional dos dois lados.
Agora, os últimos eventos dão uma outra camada, que precisamos observar ainda para ver como vai impactar na imagem dos militares. Eu acho que a tendência é que a instituição saia mais forte. No sentido de que se livrou de um ou outro extremista, como o próprio ministro fala, “um ou outro CPF”, que estava ali em uma máquina podre. Mas a instituição em si vai sair como forte para para sociedade.
É um processo de repaginação de imagem. Você vê os militares equilibrarem muito bem as relações durante o governo Lula. Eles saíram, eles participaram do resgate de civis na Palestina, se destacaram nas operações de desintrusão do garimpo nas terras Yanomami, salvaram gente nas enchentes no Rio Grande do Sul, etc. É quase como se dissessem: “olha, agora voltamos a fazer tudo que a gente sempre fez antes. Podem voltar a gostar da gente”.
Entrevista por Vanessa Gonzaga e edição por Ana Carolina Vasconcelos