“Meritocracia e empreendedorismo, na exata medida em que servem de justificação para a classe dominante, são apropriados por amplas massas trabalhadoras”. Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Texto de Carlos Virtude, militante do Movimento Brasil Popular
Uma pesquisa publicada recentemente aponta que 68% dos trabalhadores chamados “autônomos” declaram preferir emprego com carteira assinada a trabalhar na condição de MEI ou PJ [1]. O estudo é revelador do modo como a ideologia burguesa opera, mas é oportuno também para compreender o modo como o trabalhador luta, bem como as dificuldades da esquerda, no Brasil e no mundo, de compreender a luta dos trabalhadores.
Duas são as alternativas apresentadas na pesquisa – as duas condizentes com o esquema burguês: de um lado, o assalariamento formal, isto é, com carteira assinada e, portanto, com garantia de direitos; de outro, o assalariamento disfarçado, isto é, sem carteira assinada e, portanto, sem garantia de direitos. Sob este “consenso”, a esquerda no governo se coloca no polo do assalariamento formal. O fim do assalariamento está fora da equação.
Para a esquerda no governo, a consequência – indesejada, até certo ponto – desse posicionamento, é que o assalariamento (formal ou disfarçado) promove a acumulação capitalista. E essa acumulação fornece os meios materiais para o exercício e ampliação da dominação burguesa: a ideologia dominante se torna cada vez mais a ideologia da classe que domina. A esquerda no governo fornece assim as bases materiais para o que tem sido chamado de avanço do “conservadorismo
Traços característicos dessa ideologia, que se normaliza como dominante, são as noções de meritocracia e empreendedorismo, que a burguesia emprega para se justificar. Daí que os mesmos setores de esquerda que promovem a acumulação capitalista, mas com direitos, e junto a setores que se consideram mais radicais, se postam contrários a essas falsidades. Esperam que a batalha de ideias contra a ladainha desperte o trabalhador para seus próprios interesses. A estratégia se reduz, assim, a corrigir conceitualmente o proletariado.
Meritocracia e empreendedorismo
Ocorre que as ladainhas aderem socialmente à base de relações concretas, e não à base de um concurso de melhores ideias em que votam as consciências livres. Meritocracia e empreendedorismo, na exata medida em que servem de justificação para a classe dominante, são apropriados por amplas massas trabalhadoras como o único vocabulário acessível em que podem expressar as suas próprias aspirações: a ideologia dominante é contraditória.
Meritocracia significa regime do mérito. E para medi-lo, seria necessária uma régua “igual”: o trabalho. Que mérito tem, por exemplo, um herdeiro? O mérito de nascer? Do mesmo modo, o empreendedorismo pressupõe a “liberdade”, mas que liberdade há em ser obrigado a se vender por salário, cuja definição, aliás, é acabar no fim do mês? Meritocracia e empreendedorismo, na boca do proletariado, representam aspirações transformadoras.
A contradição
Marx e Engels nos ensinam, como bons materialistas que foram, que a ideologia dominante é a da classe que domina. Essa é uma lei tendencial que se produz à base de outra tendência: a generalização da produção capitalista.
A forma ideológica que brota da troca mercantil é justamente a forma jurídica [2]. Não surpreende, portanto, que interesses de classes próprios dos trabalhadores adquiram esta forma – evidente por si mesma no caso da meritocracia.
Mas como bons dialéticos, Marx e Engels jamais perdem de vista a contradição. A realidade não tem um lado bom e um lado ruim, cabendo a nós escolher o lado bom: a verdade da mera denúncia.
Contradição é sintoma de realidade: o lado bom e o ruim são facetas do mesmo processo. Temos aqui uma contradição: o interesse de classe do proletariado (conteúdo) e a ideologia burguesa dominante (forma), integrados em uma “fórmula desajeitada” [3].
Para além do assalariamento, formal ou disfarçado, existe alternativa: 1) a cooperativização, que realiza a liberdade pressuposta no empreendedorismo, estabelecendo produtores que se associam livremente [4]; 2) a socialização do trabalho como direito e dever, o que, por sua vez, fornece a régua igual para o mérito – receber proporcionalmente ao quanto se deu, enquanto não jorraram em abundância as fontes da riqueza [5].
O socialismo não é um ideal a se realizar. Ele é o movimento concreto do modo de produção capitalista como processo contraditório: o socialismo é aquilo que o capitalismo projeta como a sua própria sombra sobre o futuro.
A caminhada, todavia, é “desajeitada” e “por linhas tortas”. Os interesses de classe dos trabalhadores, que o capitalismo não pode neutralizar, acabam empacotados sob as mesmas formas ideológicas que a classe dominante autoriza, pois a emprega para justificar a si mesma. Nossa tarefa é entregar esse pacote.
*Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular.
Referências
[1] ARAÚJO, Maria Luiza. “68% dos trabalhadores autônomos no Brasil gostariam de ter carteira assinada, diz FGV”. CNN Brasil [portal], 13 jul. 2024. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/68-dos-trabalhadores-autonomos-no-brasil-gostariam-de-ter-carteira-assinada-diz-fgv/>. Acesso em: 14 jul. 2024.
[2] “Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica” (MARX, K. O Capital: livro I. São Paulo: Boitempo, 2013).
[3] “Na primeira versão da Constituição, formulada pelas jornadas de junho [de 1848, na França], ainda constava […] o direito ao trabalho, a primeira fórmula desajeitada, que sintetizava as reivindicações revolucionárias do proletariado. Ela foi transformada no droit à l’assistance, no direito à assistência social, e qual é o Estado moderno que não alimenta de uma ou de outra forma os seus paupers [pobres]? Para o senso burguês, o direito ao trabalho é um contrassenso, um miserável desejo piedoso, mas por trás do direito ao trabalho está o poder sobre o capital, por trás do poder sobre o capital, a apropriação dos meios de produção, seu submetimento à classe operária associada, portanto, a supressão do trabalho assalariado, do capital e de sua relação de troca. Por trás do ‘direito ao trabalho’ estava a Insurreição de Junho” (MARX, K. As lutas de classes na França. São Paulo: Boitempo, 2012).
[4] “As fábricas cooperativas dos próprios trabalhadores são, dentro da antiga forma, a primeira ruptura do modelo anterior, apesar de que, em sua organização real, reproduzam e tenham de reproduzir por toda parte, naturalmente, todos os defeitos do sistema existente. Mas dentro dessas fábricas está suprassumido o antagonismo entre capital e trabalho, ainda que, de início, apenas na forma em que os trabalhadores, como associação, sejam seus próprios capitalistas, isto é, empreguem os meios de produção para valorizar seu próprio trabalho. Essas fábricas demonstram como, ao chegar a certo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e de suas correspondentes formas sociais de produção, do seio de um modo de produção surge e se desenvolve naturalmente um novo modo de produção” (MARX, K. O Capital: livro III. São Paulo: Boitempo, 2017).
[5] “O direito dos produtores é proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste, aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho. Mas um trabalhador supera o outro física ou mentalmente e fornece, portanto, mais trabalho no mesmo tempo, ou pode trabalhar por mais tempo; e o trabalho, para servir de medida, ou tem de ser determinado de acordo com sua extensão ou sua intensidade, ou deixa de ser padrão de medida. Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele não reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é apenas trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais e, por conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores. Segundo seu conteúdo, portanto, ele é, como todo direito, um direito da desigualdade. O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados. Além disso: um trabalhador é casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro etc. etc. Pelo mesmo trabalho e, assim, com a mesma participação no fundo social de consumo, um recebe, de fato, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro etc. A fim de evitar todas essas distorções, o direito teria de ser não igual, mas antes desigual. Mas essas distorções são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista. O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade” (MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012).