Artigo | Lênin e os desafios do marxismo no século XXI

Antonio Gramsci o denominou “o maior teórico da filosofia da práxis”. Foto: Reprodução

Texto de Paulo Henrique Lima, militante do Movimento Brasil Popular

Este breve texto busca cumprir dois objetivos. Primeiramente, pretende contribuir com as homenagens a Vladimir Ilitch Ulianov (1870-1924), conhecido internacionalmente pelo pseudônimo de Lênin. Antonio Gramsci o denominou “o maior teórico da filosofia da práxis” e o “protagonista de uma hegemonia realizada” materializada no triunfo da Revolução de Outubro de 1917. O segundo propósito é identificar quais ideias e concepções do revolucionário russo seguem sendo fundamentais para a atual geração de militantes marxistas que acredita na necessidade da transformação radical da sociedade brasileira.

Para isso, é fundamental recuperar a historicidade do pensamento de Lênin em toda sua vitalidade, assim como a articulação estabelecida pelo dirigente russo entre método e teoria. Isso implica combater uma interpretação doutrinária e dogmática de sua obra. Dessa forma, parafraseando Marx, para o qual era preciso desvirar a dialética hegeliana, “a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”, é imperativo, 100 anos após a morte de Lênin, compreender e historicizar profundamente seu pensamento, a fim de retirá-lo do “invólucro místico” e doutrinário no qual certas interpretações vulgares do “Lêninismo” o aprisionaram.

Neste sentido, é imprescindível analisarmos como Lênin compreendia e se situava diante do marxismo. Já em seus primeiros escritos econômicos, em 1894, na obra “Quem são os amigos do povo e como lutam contra os social-democratas”, Lênin defendeu o marxismo enquanto “único método científico que exige que todo programa seja uma formulação exata do processo real”. Para ele o marxismo era “um instrumento de pesquisa científica para compreender as linhas de tendências dos sistemas de produção e relações sociais”. Dessa forma, Lênin combateu a crítica populista de que o marxismo seria supostamente uma “filosofia da história”, uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico.

Para Lênin, a “essência do marxismo” não residia “no valor filosófico geral da teoria de Marx”, mas sim na análise específica das formações econômico-sociais. Em outras palavras, na “análise concreta da situação concreta”. É o método dialético que permite compreender o processo histórico em sua determinação concreta. Esta concepção permitiu que em 1898, Lênin compreendesse através da “crítica da economia política”, a especificidade d`O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, um país cada vez mais dominado pelas relações de produção capitalistas, mas convivendo com relações pré-capitalistas.

Um ano depois, no artigo Nosso programa, Lênin estabelece de forma cristalina a conexão entre método dialético e teoria marxista. A crítica da economia política desenvolvida por Marx fornece “os princípios diretivos gerais”, que possibilitam a análise do desenvolvimento do capitalismo numa formação social específica. Lênin destaca o caráter inacabado da teoria de Marx e a necessidade de impulsionar o desenvolvimento teórico do marxismo: 

“Não pode existir um forte partido socialista sem uma teoria revolucionária que agrupe todos os socialistas, da qual eles extraiam todas as suas convicções e apliquem em seus processos de luta e métodos de ação. Defender essa teoria, que segundo sua mais profunda convicção é a verdadeira, contra os ataques infundados e contra as tentativas de alterá-la não significa, de modo algum, ser inimigo de toda crítica. Não consideramos, absolutamente, a teoria de Marx como algo acabado e intocável; estamos convencidos, pelo contrário, de que esta teoria não fez senão fixar as pedras angulares da ciência que os socialistas devem impulsionar em todos os sentidos, sempre que não queiram ficar para trás na vida. Acreditamos que para os socialistas russos é particularmente necessário impulsionar independentemente a teoria de Marx, porque essa teoria fornece apenas os princípios diretivos gerais, que se aplicam em particular na Inglaterra, de modo diferente que na França; na França de modo diferente que na Alemanha; na Alemanha de modo diferente que na Rússia. Pela mesma razão, com muito prazer daremos guarida em nosso jornal aos artigos que tratem de questões teóricas e convidamos todos os camaradas a tratar abertamente os pontos em discussão.”

Esta compreensão do marxismo possibilitou a Lênin relacionar dialeticamente economia e política, identificando o papel dirigente do proletariado russo, mesmo em um país de desenvolvimento capitalista tardio. No entanto, isso só foi possível devido à análise da questão agrária na formação social russa, produzindo uma interpretação original da “questão camponesa”. A investigação da especificidade russa serviu para Lênin fundamentar a posição original dos bolcheviques da relação entre revolução democrática e revolução socialista presente na obra Duas táticas da social-democracia na Revolução Democrática, bem como a necessidade de uma profunda aliança entre o proletariado e o campesinato na Revolução Russa de 1905.

Em 1913, por ocasião do 30º aniversário da morte de Marx, Lênin escreveu o folheto “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo”. Embora se refira ao marxismo como uma “doutrina”, o que abriu margem para leituras “doutrinárias” de seu pensamento, Lênin é inequívoco ao afirmar o caráter histórico, aberto e não sectário do marxismo:

“A história da filosofia e a história da ciência social ensinam com toda a clareza que no marxismo não há nada que se assemelhe ao “sectarismo”, no sentido de uma doutrina fechada em si mesma, petrificada, surgida à margem da estrada real do desenvolvimento da civilização mundial. Pelo contrário, o gênio de Marx reside precisamente em ter dado respostas às questões que o pensamento avançado da humanidade tinha já colocado. A sua doutrina surgiu como a continuação direta e imediata das doutrinas dos representantes mais eminentes da filosofia, da economia política e do socialismo.”

A compreensão do marxismo como um método e como uma tradição teórica “aberta” permitiu que Lênin estabelecesse uma relação dialética entre teoria e práxis, na qual a teoria revolucionária, ao mesmo tempo que a teoria ilumina e orienta a análise das formações econômico-sociais historicamente determinadas, também é enriquecida pelo desenvolvimento histórico e pela experiência concreta da luta de classes. É neste sentido que podemos compreender a afirmação de Lênin, para o qual, a teoria desenvolvida por Marx e Engels “não é um dogma, mas sim um guia para a ação”.

Mais adiante, em 1917, diante da necessidade de conquistar a maioria dos soviets para a conquista do poder, Lênin retornou a “questão camponesa”, defendendo a aliança dos bolcheviques com a ala esquerda dos “Socialistas Revolucionários” e o compromisso do governo revolucionário com a reforma agrária. Será justamente a análise da questão camponesa na Rússia que permitirá a Lênin antecipar a problemática da hegemonia como parte fundamental da luta pelo poder. Em um trecho bastante interessante, Lênin justifica a aliança com os camponeses, retomando a crítica às concepções doutrinárias e dogmáticas do marxismo:

“Os camponeses querem conservar a própria empresa, dividir as terras em partes iguais… que assim seja. Nenhum socialista razoável se afastará dos camponeses por isso […]. Nós não somos doutrinários: a nossa doutrina não é um dogma, mas um guia para nossa ação. Não temos a pretensão de dizer que Marx e os marxistas conhecem todos os feitos concretos da tarefa que leva ao socialismo. Isto é uma tolice: sabemos onde leva esta estrada, sabemos quais são as suas forças sociais, mas concretamente, praticamente, esta será indicada pela experiência de milhões de homens quando estes se movimentarem.” 

Por fim, é essencial que a nova geração de militantes revolucionários brasileiros compreenda que a originalidade do pensamento de Lênin reside, sobretudo, na compreensão do caráter inacabado da teoria de Marx. Isso significa compreender o marxismo não como uma doutrina ou dogma, mas sim como um método científico de análise da realidade e como uma tradição teórica aberta, que deve ser necessariamente impulsionado pela análise do desenvolvimento histórico do capitalismo e pelas diversas expressões da luta de classes contemporânea.

Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular

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