A visão do alimento e da terra como mera mercadoria, é a continuidade de um modelo colonialista, exploratório e latifundiário. Foto: Filipe Augusto Peres/MST
Texto de Emilly Firmino, militante do Movimento Brasil Popular
O problema da fome coletiva é um fenômeno histórico presente nas diversas fases do desenvolvimento capitalista; ao contrário do que se prega nos livros e na mídia comercial, sua variação em maior ou menor grau, não manifesta-se apenas por conta de condições geográficas desfavoráveis, desastres e crimes ambientais ou guerras. Sua existência está ligada a fatores políticos, que evoluem em torno do que a burguesia aponta enquanto prioridade nas estratégias de produção e distribuição de alimentos; relações de poder entre campo e cidade; sistemas de preços; acesso a direitos básicos; luta ideológica e etc.
Afirmar isto é revelar que, ainda que ela se manifeste de forma contínua ao longo da existência humana, as movimentações para a solução da fome e da miséria sempre estiveram subjugadas à visão do alimento enquanto mercadoria e não enquanto um direito básico para a manutenção da vida. E é nesta ausência de acesso ao que deveria ser um bem comum, e nos desdobramentos disso, que o acesso à terra e ao alimento se aproximam, já que o combate à fome e a ausência da Reforma Agrária são frutos do processo de manutenção dos privilégios de poucos.
A visão do alimento e da terra como mera mercadoria, são a continuidade de um modelo colonialista, exploratório e latifundiário que se promoveu pelo mundo subjugando todos à tentativa do “progresso” e do lucro acima de tudo e de todos. Neste modelo, construído sob um desenvolvimento anômalo e norteado pelas necessidades do capital especulativo, os senhores de terras plantaram para que o agronegócio pudesse seguir semeando a desigualdade social, ao mesmo tempo em que larga às traças os setores indispensáveis ao verdadeiro progresso social. Nele, assim como o restringir de que tem direito à terra e moradia, a fome é parte das escolhas para garantir a manutenção da hegemonia e dominação social.
No Brasil, a não implementação da Reforma Agrária é uma das consequências deste “desenvolvimento” seletivo. Bandeira burguesa criada durante a Revolução Francesa, ela foi adotada por vários países em todo o mundo como forma de resolver problemas sociais e de desenvolvimento econômico, mas não os nossos. Sua não realização tem como motivo a soma de um modelo produtivo baseado na monocultura e no latifúndio, que respectivamente geram a insegurança alimentar e a fome, centrais na criação das condições que levam ao nosso atual estágio. Assim, desde 1.500 vemos o Agro impedindo que a terra cumpra sua função social: produzir alimentos saudáveis para quem tem fome.
Assim como o restringir de que tem direito à terra e moradia, a fome é parte das escolhas para garantir a manutenção da hegemonia e dominação social. Foto: Pablo Neri/MST
Se o “Agro é Pop” se vangloria de alimentar o mundo com sua agricultura, por quê internamente o acesso ao alimento ainda é escasso e desigual? Por que as políticas públicas que deveriam ser universais se aplicam de forma seletiva? Por que, sendo a alimentação um direito universal, são tão raros os exemplos de ferramentas estatais de acesso gratuito a ela? Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), de 850 milhões de hectares de terra, nós plantamos com a agricultura em apenas 80 milhões. Destes, 21 milhões de hectares com milho, 45 milhões de hectares com soja, restando apenas 14 milhões de hectares de terra para todos cultivos como feijão, arroz, batata, mandioca etc.São números que não fecham quando pensamos que a prioridade deveria ser garantir a comida na mesa.
Como se não bastasse a fome e a concentração de terras serem problemas estruturais do brasileiros, nos vemos hoje dentro de um contexto de crise global, que teve impactos profundamente maiores em consequência da ausência de gestão do governo Bolsonaro (2019-2022). A agenda política que venceu junto ao golpe parlamentar de 2016, fazendo casa desde a posse de Michel Temer, ampliou os poderes de uma burguesia latifundiária que, frente à manutenção de seus privilégios, se movimenta e age com prioridade à acumulação de capital acima de tudo. Matar a fome e reduzir desigualdades é incompatível com seus interesses.
Não é coincidência que o quadro que levou o Brasil de volta ao Mapa da Fome em 2022 tenha começado a dar indícios do aumento da fome no país logo após o impeachment de Dilma. Os dados do Relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) expressam o resultado da secundarização e da destruição das políticas públicas populares durante o governo Temer e Bolsonaro. Suas gestões foram responsáveis não só por tesourar programas como o de Alimentação Escolar (PNAE) e o de Aquisição de Alimentos (PAA), mas também extinguir espaços importantíssimos voltados ao combate à fome, como o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Somam-se a isto, os impactos da política ambiental bolsonarista e sua relação com a produção de alimentos.
Por mais que após a posse de Lula (2023) tenha havido uma recomposição do investimento em programas voltados à agricultura familiar – que impactam na luta contra a fome -, as consequências do governo Bolsonaro são profundas e seguem gerando grandes dificuldades. Uma delas é dotação orçamentária de apenas R$ 2,4 milhões – aquém do R$ 1 bilhão requisitado pelo Grupo de Trabalho (GT) de Desenvolvimento Agrário do Governo de Transição para cada uma das ações -, que no ano passado impediu as primeiras movimentações para o cumprimento da promessa do atual governo em eliminar a fome durante o mandato. Outro impacto é a atual configuração política do nosso Congresso, que vive sob o crescimento do conservadorismo e os dilemas da composição de um governo de frente ampla.
A fome não espera: construir políticas públicas e organização popular
O combate e a erradicação da fome não é uma preocupação apenas do terceiro mandato presidencial de Lula. O Programa Fome Zero, que em 2003 substituiu o Programa Comunidade Solidária, foi parte central da campanha que o elegeu em seu primeiro mandato (2003-2006). Primeiramente aplicado no município de Guaribas (PI), uma das cidades mais pobres do país no período, a nacionalização do Fome Zero foi considerada o pontapé para a saída do Brasil do Mapa da Fome, fato que ocorreu somente em 2014. Além dele, o PT construiu outras políticas públicas fundamentais, como a criação do Programa Cartão Alimentação e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e do Programa Bolsa Família.
É impossível negar que tanto os dois mandatos de Lula (2003-2010) quanto o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014) marcaram um avanço considerável no acesso à alimentação no Brasil. Ambos produziram resultados expressivos diante da realidade de fome e risco de fome no país, subvertendo o cenário de miséria herdado do governo de Fernando Henrique Cardoso. Cabe relembrar que durante o governo FHC (1995-2002), tal qual o governo Bolsonaro, as políticas de enfrentamento à fome e segurança nutricional desapareceram da agenda política, rendendo índices de fome e miséria semelhantes aos que vivenciamos em 2023.
Hoje, beirando quase um ano e meio da posse do terceiro mandato de Lula, entre as medidas adotadas pelo governo estão a retomada das políticas criadas em suas gestões anteriores, como a recriação do Consea, a retomada do PAA, o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o recém apresentado Programa Terra da Gente. Além disso, também podem ser tomados como fatores positivos a construção de diálogos com movimentos populares, a aposta em ampliar a integração entre os Ministérios e a prioridade na construção de políticas públicas de participação social, como a regulamentação de Cozinhas Populares.
Entretanto, a superação da burocracia institucional, a execução e os desdobramentos concretos na vida do povo brasileiro ainda estão muito abaixo do que é necessário para alterar a nossa realidade. Primeiramente, porque resolver o problema da fome não está apenas em dar o alimento, é preciso reconhecer que para vencê-la é preciso resolver dilemas muito mais profundos. Ela é um sintoma de um problema estrutural, que tem raízes nas amarras do nosso passado colonial que perduram através da estrutura agrária arcaica e de todo um sistema de opressões de raça, classe e gênero que vem embutido no modelo de sociedade capitalista.
Precisamos urgentemente romper com esse sistema e, entre os caminhos para tal, está a necessidade de priorizar a instituição e o fortalecimento de políticas públicas a médio e longo prazo. Para superar nosso modelo agrário, precisamos de um plano de redistribuição fundiária e da retomada do Programa Nacional de Reforma Agrária, que desenvolva o campo e a cidade, potencializando a produção e distribuição de alimentos. Em paralelo, é urgente construir meios de amenizar a fome de forma imediata, porque “quem tem fome tem pressa” e não tem condições de viver e lutar. Logo, se coloca na ordem do dia também a necessidade de expansão do investimento público para o funcionamento das Cozinhas Solidárias, espaços que não fornecem apenas o alimento, também promovem formação e geração de emprego e renda a partir da participação social.
A resolução da fome não virá apenas dos gabinetes institucionais, nem apenas das ruas, ela será fruto de um caminho mútuo e de ações coletivas. Responsabilidade de todos, ela virá a partir de organização social e luta de massas, é preciso que o povo esteja organizado cobrando a execução do projeto político que venceu as últimas eleições. Da mesma forma, a articulação do Estado para o desenvolvimento de programas com ações e políticas de alteração estrutural, que mudem o padrão de distribuição de renda e de acesso a serviços. Para vencê-la, a fome precisa ser reconhecida em todas as suas nuances sociais, seus preconceitos de ordem moral e interesses econômicos, denunciando que a manutenção desta e da miséria é uma escolha política das elites
Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular