Artigo | Transição energética soberana, sustentável e popular: o papel dos movimentos populares na disputa de projeto nacional

Disputar o modelo e a narrativa da transição energética é disputar um projeto alternativo de mundo. Foto: Emilly Firmino

Por João Victor Oliveira, militante do Movimento Brasil Popular

Os recursos naturais sempre foram centrais no desenvolvimento das nações e da própria história. O desenrolar predatório posterior à revolução industrial, saldo de acumulação expropriada e transferida das colônias europeias, refletiu não somente no acirramento das relações de dependência entre o Sul Global e o Norte, mas também na dominação sobre os recursos energéticos de países da periferia mundial e seu (sub)desenvolvimento. 


A Presidenta do Brasil reeleita em 2014, Dilma Rousseff, é destituída por um golpe de Estado, fruto de um esquema orquestrado por forças nacionais e internacionais, e que deriva de uma forte campanha de desinformação, política de espionagem e desmonte de empresas públicas como a Petrobras. A estatal não apenas disputava o mercado de combustíveis de igual para igual com grandes petroleiras estrangeiras, bem como cooperava com países embargados ou semi-embargados pelo imperialismo, pavimentando caminhos para seu desenvolvimento, driblando as represálias econômicas dos EUA. 

Não à toa, com a agenda neoliberal entreguista de Temer em vigência no período pós-golpe, acionistas estrangeiros lucraram com a liberalização da exploração do pré-sal, leilões de privatização e dividendos exorbitantes aliados a política de preços com paridade internacional, continuada por Bolsonaro.


A Venezuela, por sua vez, tem um histórico de sanções econômicas que minam o desenvolvimento do seu povo por seguir um projeto político avesso ao do Consenso de Washington, se solidificando como uma ameaça ao poderio estadunidense e que se torna um automático alvo de campanha de desinformação e ofensivas militares.


Com o país possuindo riqueza imensa em jazidas de diamante, ferro, cobre, alumínio, urânio, gás natural e petróleo, e podendo construir condições de autossuficiência, industrialização, desenvolvimento e fortalecimento da Revolução Bolivariana em momentos políticos estáveis, nos é evidenciado o interesse e intervenção direta dos EUA na desestabilização do país e da região.

Até mesmo com Rússia, que se posiciona com maior poderio na configuração geopolítica e que sustenta importante pilar do polo anti-hegemônico, foi perceptível o uso dos recursos energéticos na centralidade da disputa, da guerra e da ofensiva imperialista, que buscou vetar a compra do gás natural e que acabou afetando seus próprios aliados, como a Alemanha. Em vista de demarcar influência política, os EUA adota uma postura intervencionista na história recente que vem desde a anexação da Crimeia, a ascensão e fortalecimento de células neonazistas na Ucrânia e a guerra entre o último e a Rússia.

Com uma inclinação do polo anti-hegemônico a esforços de desdolarização da economia, contando ainda com o protagonismo comercial que tem a China e suas iniciativas mútuas de desenvolvimento, mais a articulação entre as nações do BRICS numa dinâmica de cooperação Sul-Sul, os EUA ancoram no cerne de seus interesses conturbar a relações internacionais que trazem ameaças ao seu domínio econômico e político. Não só asfixiam o mundo em chantagens economicas com o dólar, como visto em 1979 quando o país perdia a hegemonia monetária após o fim do Acordo de Bretton Woods, mas também utilizam da instabilidade e conflito entre nações para a promoção de guerras e enriquecimento próprio, com sua indústria bélica e “indústria de reconstrução” (pós-guerra).

Apesar das inovações tecnológicas, as revoluções energéticas impulsionadas pelo “progresso” da humanidade trouxeram inúmeras consequências negativas, distribuídas de forma desequilibrada. Além das relações de dependência que modelam as trocas injustas entre o Norte e o Sul Global, o antagonismo de projetos também se dá de forma interna nos países, no antagonismo de classe.

A reinvenção do capitalismo em eras de crise

Erram os que pensam que uma transição energética é por natureza anticapitalista. O capitalismo sempre buscou e busca se reinventar para sobreviver.

Mesmo no pós-crise a partir de 1930 com orientação econômica Keynesiana, forte intervenção estatal e com condução de políticas fiscal e monetária expansionistas, desenvolvimentistas e de busca do pleno emprego, o Estado de Bem-Estar social capitalista foi sustentado pela superexploração da força de trabalho em países subdesenvolvidos.

Hoje, na era do petróleo, cerca de 1% da população mundial emite a mesma quantidade de gases de efeito estufa que dois terços do globo. Enquanto a totalidade de países ricos, possuindo metade da população, são responsáveis por 86% das emissões, são os países mais pobres os mais afetados pela crise climática, apesar de contribuírem somente com 14% das emissões.

Dentro do recorte dos mais afetados, as consequências também são desiguais. São as mulheres, população negra e periférica, indígenas, comunidades tradicionais como quilombolas e ribeirinhos os que mais gravemente se comprometem na era de emergência climática.

Hoje já vemos diversos dispositivos de mercados como créditos de carbono, que se apropriam da pauta da transição energética com uma narrativa baseada na bioeconomia e nos pilares ESG (Ambiental, social e de Governança). 

Com exceção de alguns projetos tocados por institutos e ONGs que cooperam com o governo e realizam ações éticas, legais e com protagonismo das comunidades tradicionais (vide os resultados do Bolsa Floresta e demais projetos do Fundo Amazônia), o mercado de carbono, em específico, está afundado em controvérsias e casos de ilegalidade, como falta de consenso das populações locais e tomada de áreas públicas para emissão de créditos por desmatamento evitado.

Não devemos cair na ingenuidade de acreditar que a narrativa a ser ecoada por diversos setores da sociedade automaticamente contribuirão para um novo rumo nos padrões de consumo e produção. Pelo contrário, o capitalismo utiliza de todos os mecanismos ao seu alcance para lucrar com a pauta, agravando as consequências ambientais e de qualidade de vida nos países periféricos, onde se socializa o dano e se privatiza e transfere o lucro, como nos mostrou Arthur Pigou na década de 1920. 

O papel dos movimentos populares na disputa de uma transição energética sustentável, soberana e popular

Em Mariana (MG), 2015, rompeu a barragem do Fundão. O Ministério Público Federal aponta para dezenove mortes, 41 cidades afetadas, degradação de mais de 240 hectares de Mata Atlântica, povos Krenak, Tupiniquim e Guarani atingidos, e quatorze mil toneladas de peixes mortos.

Em Brumadinho (MG), 2019, cerca de 270 pessoas morreram com o rompimento da barragem do Feijão. Apesar das indenizações questionáveis e irrisórias, a empresa responsável, Vale, lucrou mais de R$230 bilhões desde o ocorrido.

Na capital de Alagoas, bairros estão se afundando. Cerca de 20% da capital de Alagoas foi afetada pelas atividades irresponsáveis da mineradora Braskem, empresa essa que criou bairros fantasmas, que não realocou e indenizou integralmente as comunidades, numa região onde a ideação de suicidio aumentou de 2% para 20,7%, segundo pesquisa da Universidade Federal do Alagoas.

Contraditoriamente, a mesma empresa figurou no pódio da Forbes Brasil 2021 como uma das maiores empresas sustentáveis da América Latina.

Na mais recente tragédia anunciada, ocorrida no Rio Grande do Sul, com enchentes que tomaram diversas cidades, as forças populares seguem expondo as contradições da ineficiência do sistema de prevenção a enchentes sem devida manutenção, dos inúmeros prédios públicos e privados que não cumprem sua função social, da quebra de proibição da supressão de matas ciliares, da flexibilização do licenciamento ambiental e desmonte do Código Ambiental em centenas de pontos, dos R$ 400 milhões não destinados ao Departamento Municipal de Água e Esgoto pela prefeitura de Porto Alegre, da falta de colaboração do governo do estado com as medidas de reconstrução do Governo Federal, da falta de diálogo efetivo com os atingidos, entre tantas outras contradições.

A má gestão pública vista como Melo em Porto Alegre e com Leite no Rio Grande do Sul é ancorada em diretrizes neoliberais que, com a crise climática, evidenciou um projeto que mina a resiliência das cidades e que gera calamidades não só ambientais, mas econômicas e até na saúde mental da população.

Os movimentos populares sempre foram sujeitos ativos na história brasileira. Esse protagonismo histórico que carregaram as Ligas Camponesas, o MST, o Movimento dos Atingidos por Barragens e o Movimento dos Pequenos Agricultores enquanto vítimas, mas também enquanto agentes propositivos, nos lega hoje um debate político riquíssimo, fruto de diversos avanços organizativos e ideológicos, que também aponta para o novo. 

Frente às contradições do capitalismo, os movimentos populares constroem, a muitas mãos, princípios e linhas de ação como o Plano Energético Soberano e Popular, o Programa de Mineração Soberano e Popular, o Programa Vida Digna para a Juventude e o Programa de Reforma Agrária Popular, pilarizando as bases do Projeto Popular para o Brasil.

Quando o conjunto dos movimentos populares, em especial o MST, denuncia as inúmeras mazelas sociais e ambientais derivadas da monocultura, do latifúndio, da contradição da fome num país como o Brasil, e do agronegócio que nos relega a uma posição de nação primário-exportadora e de submissão, estão aqueles, também, denunciando que para construirmos uma transição energética a uma matriz limpa, é imperativo combater a agricultura patronal que aposta nos princípios da revolução verde até os dias atuais e que, com a mudança do uso da terra e desmatamento, é a maior emissora de gases de efeito estufa no país (e não os combustíveis fósseis, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

Disputar o modelo e a narrativa da transição energética é disputar um projeto alternativo de mundo. Um projeto sustentável, soberano e popular que supere o capitalismo. Pavimentar novos rumos ao nosso desenvolvimento e cultivar novos valores enquanto sociedade, é a saída para garantirmos um futuro habitável. 

Construamos, portanto, um projeto popular para o Brasil que responda à altura dos nossos desafios, curando feridas de nosso povo e nos alçando ao nosso verdadeiro potencial e à nossa verdadeira emancipação. 

*Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular.