Por Vittória Silva Paz Barreto, militante do Movimento Brasil Popular, e Ghada Taqaz, da juventude do Partido do Povo da Palestina.
Desde o dia 7 de outubro, acompanhamos o massacre que ocorre de forma intensificada na Palestina, levantando a voz e lutando por uma Palestina Livre. Neste novo momento dos ataques, mulheres e crianças representam 70% do total de 15 mil mortes até agora.
Existem diversas dimensões quando se fala da Palestina e de toda a história de resistência, mas a visão das mulheres, suas experiências cotidianas, violências sofridas, trajetórias, lutas e vitórias são ainda pouco acessadas e relatadas.
Diferentes perspectivas podem ser tomadas quando se refere a essas mulheres. Quando olhamos para a questão a partir da experiência latino-americana, precisamos lembrar que nem sempre podemos aplicar as nossas próprias perspectivas, expectativas e vivências. Nossas visões de mundo são construídas de acordo com a infraestrutura da sociedade a qual pertencemos.
É neste sentido que se constroem as experiências das mulheres da Palestina, de acordo com a construção social, econômica e histórica em que se inserem, tendo em conta questões religiosas e culturais, sem dúvida. A noção de resistência para uma mulher brasileira não será a mesma de uma mulher palestina, assim como a noção de família, igualdade, mártir, entre outras.
Nascer e viver em uma terra sob ocupação, ataques constantes, segregação e violência sionista, não ter direito às liberdades básicas, é crucial para compreender a realidade dessas mulheres.
Desde antes da Nakba em 1948, ainda sob o mandato britânico, a sociedade palestina tem sofrido com a crescente presença sionista e todas as suas consequências e, desde então, a sua autonomia para o desenvolvimento econômico e comercial tem sido restringida.
Ter água, alimentos, suprimentos e empregos controlados por Israel e estar em uma zona de guerra são questões que por si só diferenciam a sociedade palestina, o seu funcionamento e organização da nossa.
Para se ter uma ideia, segundo boletim do Observatório Internacional do Século XXI “em Maio de 2021, apenas 4% das casas em Gaza tinham acesso à água, com 97% do volume distribuído abaixo dos padrões internacionais de qualidade”.
Porém, apesar do que nos distancia, existem experiências, dores, violências e sentimentos ligados ao gênero que são universais. Ser mulher dentro de uma ampla estrutura de construção capitalista, especialmente fazendo parte da classe trabalhadora num país do sul global como o Brasil, é algo que já nos relaciona, apesar de múltiplas diferenças, a algumas questões vivenciadas pelas mulheres palestinas. A conhecida divisão sexual do trabalho, que coloca as mulheres brasileiras como responsáveis pelos cuidados na esfera privada da vida social, também afeta as mulheres árabes, dentro do seu próprio contexto.
As mães que vivem nos territórios periféricos das cidades brasileiras, que temem diariamente por suas vidas, e pela vida de seus filhos, companheiros, familiares, podem se identificar com a dor de uma mãe palestina que também teme.
A Polícia Militar do Brasil mata e prende alvos que têm classe e cor bem definidas. As Forças de Ocupação Israelenses (IOF) assassinam e prendem alvos étnicos bem definidos. Os nossos corpos estão dentro de uma lógica imperialista de geração de capital para os países do centro do sistema, em especial os Estados Unidos, os corpos das mulheres palestinas estão dentro de uma lógica de subjugação colonial e segregacionista. Inclusive, há inúmeros estudos que apontam que as mesmas armas usadas no genocídio do povo negro no Brasil, são as que são usadas no genocídio do povo palestino.
Assim, apesar das diferenças estruturais e fundamentais, existem formas de nos relacionarmos e de procurarmos compreender as dores e lutas das mulheres palestinas.
Sabemos como as questões políticas e econômicas têm um impacto direto na vida das mulheres latino-americanas, numa perspectiva de classe e raça. Mas como entendemos o impacto que o colonialismo tem na vida das mulheres palestinas? Quais as dificuldades e violências que essas mulheres passam? O que significa ser feminista e lutar dentro da realidade da Palestina? Vamos tentar pensar sobre isso e outros pontos em relação às mulheres.
As mulheres palestinianas participaram eficazmente nas várias fases da luta na história da Palestina, uma vez que encarnaram o seu papel nacional tangível na Grande Revolução Palestina em 1936, e esse papel tornou-se claro após o início da revolução palestina contemporânea em 1965, a todos os níveis. Elas estão na frente da resistência desde o início.
A história da resistência palestina está repleta de nomes de mulheres que deixaram marcas claras na luta, pois participaram em trabalhos militares e de campo, lideraram muitas manifestações e protestos nacionais contra a ocupação, portaram espingardas, resistiram, participaram da luta armada, foram martirizadas, presas e até deportadas.
Resistência
As mulheres palestinas nunca ficaram fora do quadro do conflito contra o ocupante, mas o seu papel aumentou depois de 1965, com o surgimento da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e o lançamento da organização contemporânea Revolução Palestina. Neste novo momento, o seu papel tornou-se mais regular dentro dos partidos políticos, e houve consciência entre as próprias mulheres e os partidos da sua função.
Desde 1967 até agora, mais de 16 mil mulheres palestinas foram detidas em prisões israelenses, a maioria das quais participou na ação nacional em todas as suas formas, e são prisioneiras políticas, sujeitas a violações baseadas no gênero.
Quando a Declaração de Independência foi assinada, 80% da economia da Palestina dependia das mulheres, da educação, do trabalho voluntário, do trabalho na terra, etc. Assim como é a situação das mulheres em todo o mundo: elas sustentam a economia nas suas mais diversas etapas, mas elas não são creditadas por isso.
Outras formas de violência por parte da ocupação, que afetam as mulheres são: “demolições de casas, despejos, revogações de terrenos de residência e confisco de propriedades e imposição de restrições ao registro de recém-nascidos”, segundo estudo denominado “Proteção às mulheres da violência em tempos de conflito armado: as mulheres palestinas como um caso de estudo”. Embora seja direcionado a toda a população, as mulheres são as mais afetadas por essas medidas.
Desigualdade
No que diz respeito à participação das mulheres no mercado de trabalho palestino e as suas mudanças anuais, são desproporcionais. É notório que a participação das mulheres não aumenta proporcionalmente com a expansão da economia e não diminui proporcionalmente com a recessão econômica, em contraste com a participação dos homens que muda largamente em proporção com a mudança no PIB da produção.
Qualquer pessoa que acompanhe o movimento de desenvolvimento da sociedade palestina pode observar que há um panorama das condições sociais desiguais e controladas pelo estado ocupante, e esse é um assunto que não pode ser esquecido em todas as análises.
Socialmente, difere em suas características políticas, econômicas, sociais e culturais da realidade em que vive o ser humano , essa diferença fica evidente no vocabulário do cotidiano e também nos padrões de interação simples e nas formas de relações sociais.
A participação das mulheres no processo de produção é afetada pela estrutura social e econômica, para além da cultura. As crenças, tradições sociais e costumes predominantes afetam a extensão do envolvimento das mulheres no mercado de trabalho e determinam as posições pelas quais elas podem competir com os homens.
Portanto, é claro para nós, a partir do contexto social e econômico da sociedade palestina, que as mulheres decidem ir para o mercado de trabalho à luz de um ambiente repulsivo e pouco atraente, tanto em termos de fatores sociais ou em termos de indicadores econômicos, que discriminam as mulheres direitos e privilégios.
A participação das mulheres na vida econômica da região é importante e essencial, tanto na esfera privada como na esfera pública. Contudo, essa importância torna-se invisível diante das condições e da posição das mulheres na organização social vigente.
Tudo isso torna o trabalho das mulheres inviável economicamente e representa um risco social, o que pode levá-las a tomar a decisão de não ir para o mercado de trabalho, a menos que sejam forçadas a fazê-lo. Isso significa que ir para o mercado de trabalho expressa uma necessidade e não um desejo, muitas vezes, pois é a única opção de desenvolvimento, e pode ser a última opção a que as mulheres recorrem para resolver as suas condições.
Em relação aos salários, as estatísticas indicam que existe uma disparidade salarial entre homens e mulheres no mercado de trabalho palestino. Nota-se que a taxa do salário diário médio das mulheres é de 83% do salário diário dos homens em geral. Em termos de atividade econômica, nota-se que a disparidade salarial entre mulheres e homens é mais elevada no setor industrial, onde as mulheres recebem 53% da média.
É claro que muitas das questões levantadas estão dentro da própria dinâmica social palestiniana e ainda existem diferenças entre as realidades econômicas dentro de Gaza e dentro da Cisjordânia.
As diferenças entre as mulheres palestinas e a sociedade israelense como um todo são ainda piores, com discrepâncias ainda maiores em salários, realidades e participação na vida econômica. A vida sob ocupação muda as estruturas da sociedade e, portanto, todas as possibilidades de participação.
Apesar de todas estas questões difíceis e reais, é necessário recorrer às lutas de resistência e a todas as histórias vitoriosas que florescem. Mas, para compreender as circunstâncias dessas histórias se faz necessário traçar um pouco da realidade palestina.
Casos de sucesso de mulheres que tiveram que montar seu próprio negócio do zero porque se divorciaram ou ficaram viúvas, por exemplo, são algo real e uma forma de vitória e resistência, dentro dessa dura realidade.
Dado que a maioria das mulheres com baixo nível de escolaridade, a quem impuseram viver ou aceitaram viver sob condições sociais opressoras, onde não lhes é permitido trabalhar ou envolver-se na vida social por razões religiosas e tradicionais, as quais os homens pensam que têm o direito de se impor, elas encontram maneiras de lutar contra essas condições dadas.
O patriarcado é uma forma de estruturar uma sociedade que coloca as mulheres numa posição de subserviência. Compreendemos que ser mulher é diferente nos diversos contextos, áreas, sociedades e formas de exploração sob o capitalismo a nível global, mas, ao mesmo tempo, podemos relacionar e compreender o peso que é colocado sobre cada mulher nos países subjugados.
Enquanto o colonizador, aliado aos interesses dos países dominantes, instrumentaliza a luta das mulheres e cria uma falsa ideia de igualdade, sob um feminismo liberal, nós construímos outra ideia de feminismo, ancorada no anticolonialismo e na ideia de soberania dos povos.
É importante que, ao construirmos um feminismo popular nos nossos países, especialmente na América Latina, possamos defender as mulheres palestinas e os seus direitos a liberdade e a luta anticolonial também como parte das nossas lutas. Internacionalizemos a luta, internacionalizemos a esperança também no que diz respeito à luta feminista!
Sugestões de leituras:
https://ibraspal.org/pt/post/favelabrasilgaza
Mais:
Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular
Edição: Ana Carolina Vasconcelos