Artigo | Sobre a auto-organização no movimento misto

“Não espere, levante,
Sempre vale a pena bradar
É hora,
Alguém tem que falar”

(Pitty – Todos estão mudos)

Plenária auto-organizada durante a Assembleia Nacional Luis Gama, em 2022 | Foto: Emilly Firmino

Não é possível olhar e refletir sobre a auto-organização de forma deslocada da realidade, afinal de contas os processos de opressão em que estamos emaranhadas é fruto da dialética histórica que consolidou o capitalismo como é hoje. Não à toa, quando nos debruçamos sobre as conjunturas local, nacional, ou internacional, os grupos sociais que mais são impactados negativamente com este modo de produção tendem a ter gênero, cor e classe muito bem delimitados. Também não é coincidência que grandes levantes populares de lutas sejam protagonizados por esses mesmos sujeitos, sempre demonstrando o potencial revolucionário que têm.

O patriarcado é um sistema de dominação e exploração em que homens exercem poder político e social sobre mulheres, controlando e explorando-as das mais diversas maneiras. Este sistema de dominação e exploração possui grande lastro histórico, atravessando, inclusive, diferentes modos de produção.

Falar sobre patriarcado hoje, esta estrutura histórica de dominação e exploração das mulheres, precisa significar falar também da estrutura racial e capitalista em que este é fundado e alicerçado na contemporaneidade. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil realizou-se através do escravismo colonial, estruturado de forma profundamente patriarcal nas fazendas dos grandes senhores de engenho, e a mudança no modo de produção não significou a emancipação popular, mas sim a transformação das formas como as relações de opressão e exploração racial/étnica, classista e patriarcal acontecem.

Se entendemos que nossa sociedade é fruto do desdobramento da exploração capitalista fundamentada nos patriarcado e racismo, não podemos ignorar que a configuração social atravessa a nossa formação enquanto sujeitos, fazendo que a experiência de ser no mundo seja substancialmente diferente quando se é mulher, negra/o, indígena, LGBTI+, pobre, etc.

Do mesmo modo, quando identificamos que estas estruturas estão enoveladas entre si, fica nítido que o rompimento com este modo de produção e a emancipação dos seres perpassa, necessariamente, pelo rompimento de todas elas.Numa sociedade patriarcal a diferença sexual é convertida em diferença política.  Aos homens é designado o poder político, o fazer público, o direito completo à existência social. Aqui, precisamos retomar à máxima feminista “o pessoal é político” que desconstrói a divisão público x privado e questiona que nossas relações, o que acontece em casa, nas nossas organizações, também são fruto das relações patriarcais, racistas e de classe. Dessa forma, a auto-organização surge como elemento para identificação das contradições comuns de ser mulher.

Os processos de auto-organização avançam no entendimento de mulher como identidade política e como experiência compartilhada socialmente. Mesmo com sua diversidade em cores, sexualidade, etnia, faixa etária, classe social, à medida em que tomamos consciência das diversas formas de exploração e dominação a que estamos sujeitas por ser mulher é que nos colocamos em movimento. As auto-organizações têm a potência de fazer avançar a consciência feminista de emancipação política e social de mulheres.

Por que construir auto-organização de mulheres em um movimento popular misto?

Apesar de em nosso campo político comungarmos da leitura de que o capitalismo é estruturado de forma patriarcal e racista, os movimentos populares mistos não são entidades afastadas da sociedade e nossa militância está sujeita a reproduzir o machismo, o racismo, a lgbtfobia nos diversos espaços que construímos, e também fora deles. Lá fora, através da mídia, dos produtos da indústria cultural, nas escolas, famílias, igrejas, relações de trabalho, na relação com o Estado, etc., a estrutura social está o tempo todo reforçando valores e comportamentos desta natureza, e o cultivo de novos padrões de relações sociais é tarefa constante.

Sabemos ainda que a História não é linear, mas marcada por idas e vindas, progressos e também retrocessos. No campo dos direitos das mulheres, mesmo direitos que em um momento possam ter sido conquistados, em um momento de crise podem ser questionados ou retirados. Na política e nas organizações, momentos de avanço da consciência feminista e da projeção de mulheres em espaços de poder podem ser sucedidos por períodos em que a qualidade dessasrelações retrocedem e se deterioram frente ao acirramento das contradições patriarcais no todo da sociedade. Precisamos nos manter vigilantes tanto para garantir avanços quanto para barrar retrocessos.

Dessa forma, os espaços auto organizados têm papel de contribuir na construção da sororidade, a solidariedade entre mulheres, e fortalecer a conspiração feminista dentro da organização. A vida das mulheres na política não é fácil. Os espaços mistos tendem a suprimir nossas falas e nós tendemos a não nos sentirmos preparadas para nos colocarmos publicamente. É comum que as pessoas, sobretudo homens, sintam-se mais à vontade para interromper a fala de mulheres, não levá-las em consideração ou mesmo que uma mesma ideia não seja levada a sério quando exposta por uma mulher, mas considerada e elogiada quando, na sequência, é repetida por um homem.

Assim, a auto-organização precisa contribuir também para a nossa preparação para a política, para ocuparmos espaços de poder. Por ser um espaço em que nos sentimos mais à vontade para falar entre nós podemos exercitar essa habilidade (afinal, só se aprende a falar em público falando em público), além disso pode servir como espaço de formação e formulação política feminista, já que todas as nuances da conjuntura afetam a vida das mulheres.

Ao construir espaços auto organizados, devemos cuidar para que sejam também territórios seguros onde se construam relações de confiança e nos quais seja possível aparecer com certa tranquilidade questões sensíveis a nós e as dificuldades de construção dentro do movimento para a diversidade de mulheres em nossas fileiras. Não devemos esperar, contudo, um espaço livre de contradições. Nós, mulheres, não somos um grupo homogêneo em nossas experiências de vida só por sermos mulheres. Os espaços auto organizados dentro do movimento popular também não são apartados da sociedade, e serão atravessados pelas contradições estruturais e relações de poder que marcam a sociedade brasileira, como o racismo e a lgbtfobia, bem como pelas práticas moldadas pelo capitalismo reproduzidas por todas nós.

A auto-organização precisa, portanto, ser um lugar em que seja possível o debate franco e companheiro sobre como avançamos e damos consequência à construção da práxis feminista, antirracista e anticapitalista interna e externa à organização. Deve ser também um espaço de apreensão e construção coletiva das nossas linhas gerais e debates sobre os diversos temas que rondam o feminismo. Cultivar a construção do conhecimento, da autonomia, do acolhimento e da coesão política das mulheres significa edificar nosso rumo revolucionário.

A auto-organização fortalece as mulheres militantes e permite que nos reconheçamos enquanto companheiras. A partir dos questionamentos e construções das mulheres em toda sua diversidade e potência, é possível avançarmos enquanto organização na multiplicidade de debates que travamos no nosso dia-a-dia rumo à construção de um Projeto Popular para o Brasil, afinal de contas, sem feminismo não há socialismo.

Kívia Costa é direção Estadual do Movimento Brasil Popular (MG) e do Levante Popular da Juventude

Este post tem um comentário

  1. Luana

    Que texto incrível! É necessário a retomada de auto-organizações com encontros constantes e massificados. Parabéns pelo texto e pela proposta de debate, Kívia! 🙂

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