A vitória nas urnas e a retomada do governo federal construíram a possibilidade de um rearranjo das classes. Foto: Junior Lima
Por Frederico Santana Rick, militante do Movimento Brasil Popular
A história do Brasil recente pode ser dividida em quatro momentos: 1992 a 2002, com a primeira onda neoliberal; 2003 a 2013, com o neodesenvolvimentismo; 2014 a 2022, com a retomada da ofensiva neoliberal; e o que se inicia em 2023, cujo destino segue em aberto, e o que será, depende, sobretudo, de alterarmos o atual equilíbrio da correlação de forças no país.
Nestes termos, a vitória político-eleitoral de Lula e das forças populares em 2022 representa uma janela de oportunidade. A vitória nas urnas e a retomada do governo federal construíram a possibilidade de um rearranjo das classes e frações de classes. Deram também a oportunidade de disputa da sociedade, que se encontra cindida, com a presença das forças de extrema direita em todas as classes, incluindo em parcela da classe trabalhadora.
A polarização não se dissipará e, portanto, é preciso construir força social, política e ideológica para enfrentá-la.
O golpe do impeachment de 2016 e a prisão de Lula, que teve o objetivo de impedir sua vitória nas eleições de 2018, são momentos elucidativos do que foi o último período e também do que está em jogo. Remetem a um traço estrutural da formação socioeconômica da classe dominante, que não titubeia em “desligar” as instituições republicanas para impor seus interesses, como mostram os muitos golpes da história do Brasil no século XX.
As forças de extrema direita também aproveitaram os quatro anos no governo federal para construir força nas instituições. Atualmente, estão à frente de diversos governos estaduais, elegeram bancadas importantes nas assembleias legislativas estaduais, câmaras de vereadores das capitais e grandes cidades, na Câmara dos Deputados e no Senado. Sem falar da sua presença nas Polícias Militares, nas Forças Armadas e em parcela do poder Judiciário.
Hegemonia neoliberal e eleições
As movimentações políticas recentes, tendo em vista as eleições municipais deste ano e as eleições de 2026, deixam claro que a burguesia não tem receio em apostar novamente na extrema direita. As articulações em torno do governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), não deixam dúvidas sobre isso. O tratamento amistoso e maquiador dispensado a ele pelos meios de comunicação empresariais, são ilustrativos do golpismo da direita brasileira.
Muitas das forças que se aglutinaram na frente ampla que deu vitória a Lula em 2022 e hoje compõem o governo já sinalizaram que colocarão suas fichas em outra candidatura em 2026.
O centro da disputa está no programa econômico, no papel do Estado e na disputa pelo orçamento público. Segue hegemônico na burguesia brasileira as ideias neoliberais, que insistem em lutar para que o Estado não atue para democratizar a sociedade brasileira, distribuindo renda, saber, cultura, patrimônio e acesso aos direitos. Não abrem mão de seus privilégios, se caracterizando por uma resistência sociopática à mudança, no dizer de Florestan Fernandes.
Em 2024, dos R$ 5,5 trilhões do orçamento do governo federal, 30% foram diretamente para o refinanciamento da dívida pública, ou seja, para o bolso de cerca de 30 mil famílias no Brasil, segundo estudo de Márcio Pochmann. Os outros 70% estão longe de ir para os mais pobres, como bem indicam os vultosos recursos destinados ao agronegócio, quando comparados com o orçamento da agricultura familiar e da reforma agrária.
Alguns analistas, como Pochmann, Antunes e Singer, destacaram em entrevistas recentes que as tímidas medidas de retomada das políticas públicas, tomadas em 2023, são suficientes para, na primeira oportunidade, provocar nova ruptura institucional.
Eleições de 2026 e a turma do “deixa disso”
Frente a essa estrutura de classes, à hegemonia neoliberal, ao domínio do capital financeiro e à atual correlação de forças, é fácil constatar o quão importante foi a constituição de uma frente ampla para a vitória de 2022. Bem como, é notável o quão importante é impedir seu esfacelamento, sob o risco das diversas frações de classe se reagruparem em torno de uma candidatura da extrema direita nas eleições de 2026.
Qual o caminho para lograr seguirmos sendo o polo atrativo de uma frente que enfrente a extrema direita, defenda a democracia e garanta um projeto de desenvolvimento para o Brasil?
Se contentar em manter a frente ampla, sendo dirigido por ela, implica em sérias concessões programáticas, que resultarão em menor crescimento econômico, na piora das condições de vida da população, no aumento da concentração de renda e na frustração da base social que elegeu Lula em 2022. Nesse cenário, o mais provável é a derrota eleitoral das forças progressistas nas eleições de 2026.
Diante de um governo e uma sociedade em disputa, com um polo político de extrema direita atuando diuturnamente nas instituições, na sociedade e nas redes sociais, – a indústria das notícias falsas segue a todo vapor, como ficou claro nos últimos dias com a ofensiva contra Fernando Haddad – se o outro lado não luta no campo das ideias, dos valores, das políticas e das instituições, não há chance de vitória.
As forças de extrema direita são ajudadas pela turma do “deixa disso”, que só fazem desarmar a esquerda para a disputa de projeto na sociedade. A imprensa empresarial, ao defender o projeto neoliberal, o esvaziamento do Estado, o superávit, a autonomia do Banco Central, os juros altos, etc, contribui deliberadamente para o fortalecimento do polo antidemocrático na sociedade, o qual ela compõe. Ao igualar o polo da esquerda ao polo da extrema direita antidemocrática, distorcem a realidade, com o propósito único de enfraquecer as forças progressistas.
Não é ao acaso que, a cada vez que Lula cumpre o papel de denunciar o rentismo, os interesses antidemocráticos da Faria Lima, e defender as políticas de transferência de renda, a imprensa burguesa eleva sua voz contra ele.
Como principal liderança de massas do Brasil, com capacidade única de diálogo com a população, a burguesia sabe dos riscos que corre, caso Lula coloque em curso um processo de mobilização e politização das classes trabalhadoras, dando contornos claros a um projeto popular e pautando as reformas estruturais. Lula também é constantemente disputado.
Na esquerda, encontramos diferentes atitudes frente a esse cenário, como Valério Arcary e Igor Felippe e outros têm apontado em artigos recentes. Frente à correlação de forças desfavorável, há quem aponte que o correto é centrar esforços na frente ampla, para que ela não se rompa, “baixar as armas” e não fazer a disputa ideológica, em uma atitude que podemos chamar de pacifista.
A aposta é que, com a melhoria da economia e com a implementação das políticas públicas que beneficiem os mais pobres, esses reconhecerão a importância de votar pela continuidade dos governos populares.
Como bem tem apontado Frei Betto, esse é um caminho que não se mostrou exitoso na luta contra o golpe em 2016 e contra a prisão ilegal de Lula em 2018, por exemplo. Além disso, em 2022, Bolsonaro ganhou em cidades governadas pelo PT e com bons índices de aprovação da gestão municipal. A falta de politização faz com que não acumulemos na disputa da sociedade, e na construção de um projeto popular.
Outro caminho, também presente nos debates da esquerda, é o que diz que é preciso romper com o governo federal. O principal argumento é que, sendo um governo de frente ampla, esse não representaria os interesses da classe trabalhadora. Uma visão simplista e frágil, que, para dizer o mínimo, desconsidera a importância da disputa do governo por dentro e por fora.
Frente popular, crise econômica e ambiental
A constituição de uma frente popular, por outro lado, é o caminho que possibilitará a disputa do governo e da sociedade. Sem ela, o protagonismo da direita travestida ou não de democrata prevalecerá. Em que pese termos muitos setores da esquerda com esse entendimento, o que temos até o momento é um arremedo de frente, com a esquerda dispersa em diferentes iniciativas, sem ter ao menos unidade de agenda de luta, muito menos unidade de ação e programa.
A frente popular precisa se constituir como polo dirigente da frente ampla, ou, nos termos formulados pelo Movimento Brasil Popular, precisamos de frente popular e de coalizão democrática. As razões para a dificuldade de constituição da frente popular são muitas. Entre elas, podemos destacar o legado de fragmentação e de uma tática de resistência, fruto de um longo período de dez anos de defensiva, que se inaugurou em 2013.
Com a vitória eleitoral em 2022, um novo arranjo da esquerda se inaugura e os partidos e movimentos ainda buscam, desde então, a melhor forma de se posicionar. A hegemonia do PT na esquerda, sendo ao mesmo tempo a força principal do governo, traz também desafios para que o partido consiga produzir orientações que deem conta de sustentar e defender o governo, a frente ampla e, ao mesmo tempo, mobilizar a sociedade via frente popular, para pressionar pela democratização do país.
Recentes reuniões conjuntas da Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo são meritórias e importantes, mas têm se demonstrado aquém dos desafios das forças populares. Entre eles o principal é a retomada do diálogo com a classe trabalhadora e a construção de força social, abraçando as lutas locais.
A esquerda tem se mostrado distante das periferias e pouco criativa no método de trabalho de base e organização popular. As mobilizações de massas, necessárias para alterar a correlação de forças, não são obra do acaso ou sorte, mas resultado dessa presença solidária e comprometida com a solução dos problemas do povo.
A urgência de fazermos avançar no Brasil uma coalizão em torno de um programa de desenvolvimento nacional é de relevância mundial decisiva para a democracia e para a sobrevivência da humanidade, ameaçada pelas consequências da economia capitalista, que tem destruído as condições ambientais da terra. Ou mudamos o sistema econômico, ou a terra seguirá sem nós, como tem nos alertado Leonardo Boff e o Papa Francisco.
As forças populares do Brasil têm um papel decisivo na luta entre a vida e a morte.
*Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos