Por Jarbas Vieira e Thays Carvalho, militantes do Movimento Brasil Popular
Essa é uma frase de Zumbi dos Palmares. No mês da consciência negra, no dia nacional de Zumbi dos Palmares, somos convocados a refletir e lutar como povo brasileiro por um projeto de país cujo reconhecimento de sua potencialidade e sua possibilidade de se realizar como uma nação justa e soberana está na sua diversidade, em especial na contribuição africana e indígena ao longo de nossa história.
Os quase 400 anos da escravidão no Brasil, quando lembrados, são apontados como elementos do passado ou como um sinal do atraso da sociedade brasileira em se inserir na modernidade capitalista. Não só os números alarmantes da persistência da desigualdade racial hoje desmontam essa farsa da “escravidão do passado”, mas a própria oposição entre modernidade capitalista e “passado” escravista.
A criação da força de trabalho assalariada foi parte indissociável da criação do capitalismo industrial que, por sua vez, fundou-se nas construções correlatas do mercado mundial e do colonialismo moderno.
O Brasil tornou-se o maior produtor mundial de café em 1850, com um percentual de 40% de toda produção global. Essa marca está diretamente associada à reabertura ilegal do tráfico transatlântico de escravizados (1835-1850), o qual contou com o suporte decisivo da atuação dos políticos conservadores no parlamento brasileiro e em outras instâncias de poder, garantindo a consolidação definitiva da cafeicultura como principal atividade econômica do Império do Brasil. Estudos apontam que, dos mais de 690 mil escravizados desembarcados no Brasil nesse período, 80% chegaram ao sudeste cafeeiro.
Outros estudos apontam as implicações do ouro brasileiro para a economia inglesa, entre elas o lançamento das bases para o estabelecimento do padrão-ouro e o fortalecimento do Banco da Inglaterra e da rede bancária privada. O afluxo do ouro brasileiro foi um vetor decisivo para a completa monetarização da Inglaterra e estimularam de forma direta a industrialização no país, berço da Revolução Industrial.
Outro levantamento, realizado por 14 pesquisadores de universidade brasileiras e americanas, indicou o envolvimento do Banco do Brasil no comércio de negros escravizados durante o século XIX. A pesquisa aponta que havia “vínculos diretos entre traficantes e o capital diretamente investido em ações do Banco do Brasil”. O Ministério Público Federal abriu inquérito neste mês para apurar a responsabilidade da Banco do Brasil na escravidão.
Apontamentos históricos indicam que as primeiras minas abertas no Brasil foram no estado de São Paulo, por volta de 1580 nas regiões de Jaraguá e Cantareira, território conhecido como Vale do Ribeira. O processo de ocupação na região se deu baseado na exploração mineral – Porto de Registro de Ouro (atual Registro), local onde se fazia o registro e a coleta de impostos do ouro vindo de Eldorado e Iporanga no século XVII.
Na região do Vale do Ribeira, hoje existem diversos pedidos de pesquisa e lavra para mineração em territórios quilombolas. A região do Alto Vale, no Paraná, é a que sofre mais pressão. Os quilombos de Cangume, Porto Velho e Praia Grande, localizados em Iporanga, têm de 92% a 99% de seus territórios incluídos em pedidos para extração de algum tipo de minério, com destaque para calcário, minério de cobre, chumbo e de ouro.
O período conhecido como Ciclo do Ouro ocorreu principalmente em Minas Gerais, que é o principal estado marcado pela exploração mineral escravocrata do período colonial. O estabelecimento das primeiras lavras na região onde hoje é Mariana (antiga Vila do Carmo) aconteceu a partir de 1696 e começam a ser minerados os territórios dos atuais municípios de Barão de Cocais, Santa Bárbara e Catas Altas.
Bento Rodrigues, a primeira das comunidades totalmente destruídas pelo rejeito da barragem de Fundão (Samarco/Vale/BHP Biliton), que rompeu no dia 5 de novembro de 2015, foi criada por causa da exploração de uma lavra aurífera. A comunidade passa a existir por causa da mineração do ouro no período colonial e deixa de existir no ciclo da mineração industrial do minério de ferro, por ações criminosas da Samarco/Vale/BHP Billiton que causaram o rompimento da barragem do Fundão.
A promessa do trabalho assalariado nunca chegou efetivamente à população negra brasileira. Em estudo publicado em novembro deste ano, mais uma vez o DIEESE mostra as desigualdades raciais no mercado de trabalho. Quase metade (46%) dos negros estava em trabalhos desprotegidos. Entre os não negros, essa proporção era de 34%. Uma em cada seis (16%) mulheres negras ocupadas trabalha como empregada doméstica.
Fica evidente que as relações históricas dentro do modelo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro seguem o padrão de superexploração da força de trabalho da população negra, da destruição dos bens naturais e gera mais riscos de crimes ambientais.
O que queremos sustentar é que a modernidade, o modelo de desenvolvimento capitalista não teve e não tem nenhuma contradição ou oposição a formas de exploração predatórias, brutalmente desumanizantes. Assim, como temos visto recentemente, as forças neoliberais darem sustentação a governos de extrema-direita, como Bolsonaro no Brasil e, agora, Milei na Argentina.
Ou ainda, a cumplicidade da comunidade internacional com o genocidio colonialista e racista em Gaza. Por isso, é importante fazermos uma campanha sistemática para apontar a barbárie de qualquer ideologia racista e também evidenciar o vínculo existente entre esta ideologia racista e o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo.
Nunca é demais lembrar o alerta de Florestan Fernandes que diz que “a raça que definirá o padrão de democracia, em extensão e profundidade”, apontando para a necessidade de termos ações mais incisivas e enérgicas para superação do racismo e aprofundamento da democracia brasileira.
É nesse lugar, inclusive, que entendemos o significado da aprovação da nova Lei das Cotas, sancionada pelo Presidente Lula (PT), no dia 13 de novembro. É uma medida de democratização de um dos principais mecanismos de elitização e de distribuição desigual de oportunidades, uma vez que as universidades públicas brasileiras foram o espaço que historicamente formou os quadros intelectuais e políticos que ocupam os espaços de poder e acessam os melhores postos de trabalho na sociedade brasileira.
Nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), houve uma maior visibilidade e enfrentamento às questões raciais no país. A criação de ministérios específicos, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que se tornou Ministério da Igualdade Racial (MIR) em 2023, a criação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010, a implementação da Lei 10.639, que obrigou o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, foram medidas importantes.
Neste 20 de novembro de 2023, o Presidente Lula e a Ministra Anielle Franco anunciaram, junto a outros ministros, 13 ações para o enfrentamento ao racismo e para a promoção da igualdade racial. Políticas estas voltadas para ações afirmativas, levantamento de dados da população negra, titulação e políticas para territórios quilombolas e qualificação profissional de uso de tecnologias sustentáveis de baixo custo.
Mesmo com estes avanços, que são significativos para a população negra, é necessário pensarmos uma articulação transversal nas políticas prioritárias do presente e do futuro, em uma combinação de combate ao racismo estrutural e um modelo de desenvolvimento que respeite as populações e seus territórios (urbanos e rurais), tais como o direito à cidade, reforma agrária, igualdade salarial, políticas de transição energética e outras.
Assumir a luta antirracista é uma medida de reparação, de correção de desigualdades históricas com relação a população negra e também um elemento fundamental para pensar um outro modelo de desenvolvimento e de projeto de país cuja centralidade seja a vida.
Considerando a sua longevidade e escala, o racismo e o colonialismo na história da humanidade foram os maiores mecanismos de naturalização da morte e do extermínio. Não é demais relembrar: foram 12 milhões de pessoas sequestradas dos seus territórios para serem escravizadas. E, o mais dramático é que o racismo ainda segue produzindo violência, seja através da eliminação física ou do encarceramento em massa. Sem combatê-lo definitivamente, fica distante a possibilidade de tornar palpável um projeto emancipatório em que não haja nenhum tipo de discriminação.
Ademais, os quilombos e os territórios indígenas são locais de luta e resistência e também de práticas milenares de reprodução da vida, a partir do respeito e da harmonia entre ser humano e natureza.
Com o mês da Consciência Negra, o Estado e o povo brasileiro são convocados a refletir sobre a realidade que a comunidade negra enfrenta diariamente. Mas, também as suas potencialidades e as contribuições que podemos dar para construção de outro projeto de país.
Como dizia Lélia Gonzales: Palmares é um exemplo livre e físico de uma nacionalidade brasileira, uma nacionalidade que está por se constituir!
Negros e negras, orgulhai-vos da sua cor!
Dela há de nascer um novo país!
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do site.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos