Artigo | Formação social brasileira: racismo e patriarcado nas raízes do capitalismo dependente

Foto: Vinícius Braga

Texto adaptado de fala em momento de formação no I Encontro Estadual de Mulheres do Movimento Brasil Popular de Minas Gerais, ocorrido em Belo Horizonte em 05 e 06 de agosto de 2023. No Encontro, a exposição foi precedida de um debate em grupos orientado pela seguinte pergunta: “ao longo da história, quando pensamos na cultura política e na estrutura social, quais foram as rupturas e permanências do capitalismo patriarcal racista no Brasil?”. 

As respostas dos grupos destacaram diversos elementos de avanços institucionais e ganhos de direitos para as mulheres e população negra, da abolição da escravidão à Lei Maria da Penha e a PEC das Domésticas, passando pelos direitos ao voto e ao divórcio e pela conquista de alguns direitos sexuais e reprodutivos. Em termos dos direitos, é destacada ainda a permanência da criminalização do aborto. A permanência da divisão sexual e racial do trabalho perpetua diversas formas de opressão e exploração na cultura da nossa sociedade em geral, como desigualdades salariais, sobrecarga de trabalho dos sujeitos alijados do poder, controle dos corpos, sexualidade e pressões estéticas, etc. Em nossas organizações, a garantia de espaços auto-organizados e a politização dos debates em torno de representatividade em espaços de direção foram destacados como avanços, mas ainda lutamos com a sobrecarga de tarefas, o domínio branco e masculino dos espaços de fala e elaboração e a dificuldade de socialização com os companheiros homens, sobretudo brancos, de tarefas ligadas à reprodução e aos cuidados coletivos, como cozinha, ciranda, organização e limpeza dos espaços físicos.

Exposição

O exercício de compreender simultaneamente o que são rupturas e permanências revisita a noção de dialética. É no movimento das contradições, com continuidades e rupturas que se produzem alterações da sociedade. Assim, a alteração da estrutura não se dá num processo de ruptura total. É um movimento de superação de contradições e, em alguns casos, superamos incorporando. A própria sucessão dos modos de produção na história se dá a partir dessa lógica, em que cada modo de produção novo nascia incorporando elementos do modo de produção anterior, ainda que seja qualitativamente diferente. 

O patriarcado surgiu antes do capitalismo e é incorporado por ele. Quando o patriarcado se incorpora ao modo de produção capitalista, ele muda de qualidade. Nosso esforço é exatamente identificar as mudanças de qualidade que tiveram as estruturas patriarcais ao longo da história. Mudanças estruturais não estão só na ordem da superação: ainda que não acabem com uma estrutura, algumas mudanças a alteram. Isso é importante para pensarmos as lutas táticas e estratégicas. Quais são as mudanças que têm uma natureza estratégica? O acesso ao mercado de trabalho e o voto são exemplos. 

Para analisar a realidade, precisamos compreender que existem categorias que devem ser historicizadas, enquanto outras são universais/abstratas. Entre as universais, podemos citar as categorias “gênero”, “sexualidade” ou “modo de produção”. Elas existem em toda sociedade humana, em qualquer tempo histórico. Já a categoria “patriarcado” não é abstrata. O patriarcado não existiu em todos os períodos históricos, mas surgiu em circunstâncias específicas, e é justamente o fato de não ter existido sempre que nos autoriza a pensar que podemos construir uma sociedade sem patriarcado. 

Quando colocamos o patriarcado sob uma perspectiva histórica, estamos nos perguntando como essa estrutura de dominação e exploração se relaciona com a forma como homens e mulheres produziram e reproduziram sua existência. Nesse sentido, localizamos o surgimento dessa ordem patriarcal de gênero a partir da emergência de 3 aspectos. A divisão sexual do trabalho, a agricultura e a produção de excedentes foram fundamentais para que se criasse a ideia de propriedade privada e da heterossexualidade como condição necessária para a constituição, pelo lado masculino, de uma linhagem ligada à possibilidade de herança.

Este é um raciocínio que também nos permite pensar na questão racial. A história da humanidade é profundamente marcada pela discriminação de diversas ordens. O racismo como conhecemos hoje também tem uma localização histórica específica, que não corresponde a outras formas discriminatórias que existiram em outros períodos históricos. Nesse sentido, dizemos que enfrentamos o “racismo moderno”, que se vincula ao surgimento do modo de produção capitalista e foi fundamental para que a Europa atingisse as condições de desenvolvimento do capitalismo. 

O Brasil é parte do processo de desenvolvimento do capitalismo na Europa na medida em que a exploração colonial foi parte do processo de acumulação primitiva de capital. A invasão europeia nas Américas provocou um choque de modos de produção e de formas de organização da vida social, entre os povos originários e o colonizador. Esse choque poderia ter se desenvolvido de maneiras diversas, contudo, a imposição à colônia da organização social do colonizador não se deu como uma cópia da formação social portuguesa. 

No Brasil colônia, se desenvolve então um modo de produção específico que tem relação com o desenvolvimento capitalista europeu, mas que não era o modo de produção capitalista que se desenvolvia no território da Europa. A escravização é a característica fundamental de diferenciação, associada ao latifúndio e à monocultura (atentar para as formulações presentes nas obras O escravismo colonial, de Jacob Gorender, e o capítulo “Do escravismo pleno ao escravismo tardio”, em Dialética Radical do Brasil Negro, de Clóvis Moura). 

Não é a associação ao desenvolvimento do capitalismo europeu na esfera da circulação de mercadorias que define o modo de produção que havia no Brasil, mas as relações sociais de produção que aqui se desenvolviam. Entretanto, isso não quer dizer que exista contradição entre capitalismo e escravidão. Existe, na verdade, uma mútua determinação. 

É também no período colonial que se instala na colônia a ordem patriarcal de gênero. Junto ao interesse expansionista com caráter econômico, vigora também o processo de evangelização ligado à igreja católica, em um esforço de transplantação portuguesa do modelo de família, da heteronormatividade compulsória e das formas de controle da vida e do corpo das mulheres. Esse movimento tem duas vias: a mulher branca é inserida e tolhida no interior da família nuclear enquanto as mulheres negras e indígenas são desumanizadas e violentadas. Essa estrutura patriarcal se desenvolve historicamente no Brasil carregada desse conteúdo de violência, do conservadorismo católico e constrói uma sociedade que condena as mulheres a uma lógica de segregação. Conseguimos localizar aí a divisão sexual do trabalho, a propriedade privada e a heteronormatividade compulsória. Isso produz tanto uma ideologia patriarcal quanto racista (racismo científico, por exemplo). 

De acordo com a formulação de Patrícia Hill Collins, a escravidão foi uma instituição patriarcal que se apoiava na autoridade do homem branco e na junção entre a política e a economia na esfera familiar. Ou seja, nesse ordenamento social, não há separação entre o político e o econômico. A escravidão é ainda um reforço permanente do lugar do masculino:

“A escravidão foi uma instituição profundamente patriarcal. Ela se apoiava no princípio dual da autoridade do homem branco e em sua propriedade, uma junção das esferas políticas e econômicas dentro da instituição familiar. A heterossexualidade era presumida e era esperado que todos os/as brancos/as se casassem. O controle sobre a sexualidade das mulheres brancas abastadas foi central para a escravidão, uma vez que as propriedades deveriam ser passadas aos herdeiros legítimos dos senhores de escravos. Assim, assegurar a virgindade e a castidade dessas mulheres brancas estava intimamente atrelado à manutenção das relações de propriedade.”

Consideradas as determinações históricas que atravessam os períodos de colonização e império, podemos visualizar como as relações patriarcais impulsionadas pelos colonizadores foram se introjetando na sociedade brasileira por meio da divisão sexual do trabalho, da propriedade privada e do heterossexismo. A hegemonia patriarcal não se encerra com o fim da colonização ou com o pleno desenvolvimento capitalista. 

No Brasil, a transição do modo de produção escravista colonial para o capitalismo tem uma ruptura que não representa uma superação do patriarcado como um todo. Ele assume outra forma, ajustada à forma de exploração capitalista: supera incorporando. 

O próprio processo de rompimento do pacto colonial, que culmina no processo político da Independência do Brasil, não se coloca como uma ruptura total, mas inaugura o capitalismo dependente. Há rupturas e permanências: superamos o trabalho escravizado, mas criamos a superexploração do trabalho, mantendo a força de trabalho em condições abaixo do mínimo necessário para reprodução da sua própria existência. O trabalho precarizado no capitalismo dependente, portanto, não é um dado de agora, mas é condição para desenvolvimento do capitalismo mundial. O racismo e a divisão sexual do trabalho cumprem um papel fundamental nessa lógica ao rebaixar o valor da força de trabalho e possibilitar uma menor remuneração para parte considerável da classe trabalhadora. Por isso dizemos que existe um imbricamento entre racismo, patriarcado e capitalismo. 

Podemos olhar para esse processo de transição nessa chave de ruptura e permanência a partir de um outro ponto de vista. No período colonial, as mulheres escravizadas eram vistas como propriedade do senhor de escravos com seus corpos sempre disponíveis. Essa forma de subjugação não está posta na transição para o capitalismo, mas o controle dos corpos das mulheres permanece.

A prostituição e outras formas de exploração sexual, a precarização do trabalho ou mesmo a eliminação física e encarceramento em massa são formas estruturais e permanentes de controle social mediadas pela violência. Essa é a forma como o capitalismo brasileiro gere a força de trabalho.  

No século XVII, a Revolução do Haiti (1791) foi possibilitada pela união entre escravizados e ex-escravizados. Temendo o exemplo do Haiti, no Brasil, a classe dominante buscou organizar a divisão da força de trabalho para evitar a unidade política entre os seus diferentes segmentos. Um exemplo dessa iniciativa de divisão da classe estava colocada, naquele momento, na possibilidade de um ex-escravizado possuir, ele próprio, pessoas escravizadas. Atualmente, podemos dizer que o papel do trabalho doméstico para as classes médias no Brasil cumpre também esse papel de divisão e não reconhecimento de questões comuns entre os sujeitos, que possibilitariam lutas conjuntas por mudanças sociais. 

Temos que pensar na luta, portanto, nesses marcos. As lutas antirracistas e antipatriarcais são associadas à luta anticapitalista não por opção, mas para enfrentarmos o que determina essas formas de exploração e dominação, tanto do ponto de vista objetivo, quanto do ponto de vista subjetivo.

Quando olhamos a história da esquerda, a não compreensão da formação social brasileira nos levou historicamente a uma dificuldade de organização da classe. Algumas formas dessas dificuldades foram superadas, mas mesmo conquistando mais espaço, com a ampliação da participação das mulheres, o que é qualitativamente importante, os espaços políticos seguem tendo uma lógica patriarcal e racista. Aqui também temos um desafio não só quantitativo, de ampliar a participação, do mínimo de paridade nos espaços, mas também qualitativo, de construir uma cultura política nova. Para isso, precisamos nos debruçar sobre os desafios e as implicações concretas de construção de uma organização feminista e anti racista. O que da cultura política anterior precisamos superar e qual cultura política queremos construir? Como construir um método de direção política feminista e antiracista?

Um exemplo nessa direção é o processo de elaboração. Em geral, constumamos associá-lo a um exercício individual, de pessoas geniais, isto é, como algo que é para poucos. O feminismo negro e as práticas das comunidades negras nos dão exemplos em outra direção. A elaboração está associado a processos coletivos, forjam-se referências individuais, mas que se constituíram em comunidade.

Isso não significa, de forma nenhuma, desprezar o valor do estudo e o necessário esforço individual e rigor científico, mas as sínteses que fundamentam as nossas elaborações, elas se constroem melhor em processos coletivos. Precisamos construir esse método mais coletivo e, por ser coletivo, é mais inclusivo. 

O feminismo, o antirracismo e a luta anticapitalista colocam diretamente a necessidade de mudar hoje – e não em um futuro distante – as relações humanas dentro e fora das organizações. Ainda que a questão de classe também traga esse tipo de reflexão, os debates feministas e antirracistas nos implicam como sujeitos de forma mais profunda e imediata. 

Existe um clima geral de indignação entre mulheres e pessoas negras com as contradições da sociedade e também das organizações de esquerda e seus militantes. Precisamos passar a um momento de proposição, para além da indignação. Sendo uma organização mista, qual a organização feminista e antirracista que queremos construir para todos? Porque o feminismo, o antiracismo popular é a construção de uma sociedade melhor para homens e mulheres, de relações humanas mais emancipadas e libertárias. Esse processo de transformação envolve inevitavelmente o conflito, a tensão, mas também pode ser educativo, de aprendizado mútuo. O fundamental é compreender o que Safiotti nos alertava: que esses três sistemas de dominação-exploração fundiram-se de tal maneira que será impossível transformar um deles, deixando intacto os demais. Disto decorre o fato de que todas as atitudes machistas reforçam a fusão do trio da dominação-exploração. 

Então vamos lá fazer o que será e construindo desde já, nas nossas práticas, a ideia que sem feminismo não há socialismo!

*** Thays Carvalho é Direção Nacional do Movimento Brasil Popular

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