Artigo | Filtro de Sonhos para 2024

Foto: Junior Lima
Foto: Junior Lima

Para o desafio de cotejar o balanço do governo Lula de 2023 e reunir elementos para perspectivas  2024, as ferramentas analíticas da conjuntura nos levam a auferir a correlação de forças da luta de classes por meio de uma rigorosa análise marxista. Neste breve artigo, nos permitimos evocar um filtro de sonhos, como se esse amuleto pudesse trazer serenidade diante do caleidoscópio de imagens que somos bombardeados desde o retrato da posse do presidente Lula subindo a rampa. 

Yanomamis em desnutrição, desabou São Sebastião, a Braskem afundou Maceió, a Loja Americanas deu calote, trabalhadores de colheita de uva resgatados de regime análogo à escravidão, a Feira do MST voltou ao Parque da Água Branca. E as jóias sauditas? O Brasil perdeu Zé Celso, Rita Lee, João Donatto e Mãe Bernadette. Ondas de calor intensas, chuvas, inundações e apagões. Bombardeio em Gaza. Quanto era a gasolina no ano passado? Fragmentos. 

Quem se lembra de como estávamos em outubro do ano passado? E as perspectivas para 2021? Qual era a possibilidade de discernir sonho e pesadelo em 2020? A desvalorização do tempo é constitutiva da fragmentação do sujeito contemporâneo. Se a vivência corresponde ao uso que fazemos do nosso tempo, grande parte sob domínio da vida produtiva, é no ato da transmissão, ao compartilhá-la por meio da linguagem, que a vivência ganha o estatuto de experiência. 

O que Benjamin chama de “experiência”, refere-se à transmissão que depende de formas de narrativas. É por meio da elaboração dos relatos que se transmite a dimensão ética e estética e acrescenta encantamento ao saber e, assim, elas dotam ao passado vivido qualidades mágicas e preservam na vida consciente da comunidade uma série de representações e de afetos.

O capitalismo molda um cotidiano que exige respostas imediatas a esses fragmentos de notícias velozes e constantes. As formas dilatadas da atividade psíquica, as fantasias e devaneios distraem o sujeito das exigências impostas pela rapidez do presente absoluto. 

Aqui está o lugar do Filtro de Sonhos na análise: a experiência é incompatível, tanto com a temporalidade veloz quanto com a sobrecarga de solicitações que recaem sobre a consciência. A condição para a experiência é antes o ócio e a imaginação.

Seria sonho ou pesadelo o primeiro ano de governo Lula III? A experiencia nos leva a conceber que seria o resultado contraditório da defesa da democracia, do enfrentamento ao bolsonarismo, em uma frente eleitoral amplíssima das forças progressistas, populares e democráticas.

Em uma conjuntura na qual a direita tem ativistas, mobiliza, tem presença no território e faz luta ideológica, a vitória de Lula foi mais que eleitoral, foi uma vitória política da democracia e da retomada do papel do Estado. 

Em uma conjuntura de vencer as eleições presidenciais e não vencer as eleições parlamentares, temos a necessidade de retomar o sonho do Projeto Nacional dentro dessas condições, que são pesadelos da esquerda: guerra, fome, baixa mobilização popular, com escalada da violência. 

Quem mobilizar o amuleto do filtro de sonhos para deter os pesadelos, vai dar ênfase à composição dos ministérios MCDH, MIR, MM, MPI, MDA e ecoar as palavras do ministro Silvio Almeida para definir 2023: “nós existimos e somos importantes”. Vai ter o sonho embalado pelo lema: “União e Reconstrução” e sentir-se convocado a lutar contra as desigualdades, pela paz, enfrentar a fome, o marco temporal e vislumbrar nisso a estratégia para qual o presidente convoca a mobilização popular e convida a sonhar: “o Brasil voltou!”

Já para quem reter o sonho e o pesadelo tomar de conta, a frustração abate toda aquela energia que se colocou em movimento contra o golpe, pelo Lula Livre, Fora Bolsonaro e eleições polarizadas em que a esquerda resgatou o sonho antigo do “sem medo de ser feliz”

Pode haver a frustração da expectativa com a participação social no governo, o que vislumbramos sobre as políticas públicas combinadas com participação popular, a partir da experiência dos governos anteriores, em que o povo foi considerado beneficiário ao invés de protagonista na luta por conquistas e direitos, e isso deu em golpe e prisão sem capacidade de resistir.

A aposta na combinação de coisas que não necessariamente combinam, a luta institucional, de massas e ideológica, pode gerar frustração, até descobrirmos o “como” combinar o governo democrático (com devaneios republicanistas) com a luta popular, se (re)colocando em movimento, e a necessária ofensiva de construir hegemonia da classe trabalhadora na sociedade, nesse momento histórico. 

Ainda é preciso estar atento para a frustração social e, principalmente, com relação à juventude. Sem disputar a possibilidade de sonhar com futuro, essa frustração torna-se terreno do fascismo latente. A frustração se dá também com relação ao tempo, a paciência histórica necessária para a fórmula: é preciso organizar a casa para as “entregas” e a melhora da vida do povo “serem arrancadas” no próximo ano, com muita luta.

Há ainda o pesadelo incontornável da crise do capitalismo, que não cumpre seus desígnios de retomar a taxa de lucro num patamar qualitativamente superior e descarta gente que não tem mais lugar no sistema produtivo nem no consumo. 

A combinação das crises econômica, política, ambiental e social não fortalece o capitalismo, como é a função da clássica crise de superprodução, que é de reinventar o modo de produzir, propiciando uma apropriação da riqueza cada vez mais concentrada. 

O que se reinventou nessa crise foi o neoliberalismo. O neoliberalismo autoritário encontrou no Brasil uma versão adequada: a extrema direita criou constrangimento à democracia e conduziu a agenda econômica neoliberal. Quando estamos na consciência unilateralmente conectadas com uma possibilidade, a outra oposta vai se fazer presente no inconsciente. 

Ainda temos um trabalho enquanto pensamento crítico na sociedade, que é integrar, tornar consciente o que está no inconsciente com relação ao que é o bolsonarismo.

O governo Bolsonaro foi eleito com uma base de sustentação política radical na linha do antissistema que empreendeu um programa de reformas no capitalismo brasileiro a favor dos rentistas e foi assertivo nas pautas conservadoras, com aceno para mobilização permanente da sociedade, promovendo um processo de criminalização das políticas discricionais do Estado. 

A narrativa lavajatista, que sustentou o desmonte da Petrobras e do BNDES, que foram destituídos das suas principais funções, assim como sustentou o processo de privatização e alienação dos instrumentos de política econômica, foi mais que um pesadelo. Foi um déjà vu da crítica liberal no Brasil, que desde os anos 1950 argumenta que a crise é fruto dos “arroubos desenvolvimentistas”: excessos e descontroles das contas públicas! E propõe cortes, teto, controle do gasto, evocando a sensação subjetiva e intensa de já se ter vivenciado algo, apesar de sabermos que está acontecendo no presente: “o Estado vai quebrar se tiver políticas públicas voltadas ao desenvolvimento”. Essa narrativa cola num país com a classe dominante anti-nacional, anti-popular e anti-democrática que não suporta medidas de distribuição de renda, inclusão e participação por sua formação patriarcal e escravagista. 

O pesadelo da classe dominante do Brasil é o povo entrar na história como protagonista da construção nacional. Se o povo se organiza, mobiliza, num processo de tomada de consciência, entra na história ou no orçamento, é golpe. 

Essa imagem nos conduz ao que queremos destacar como o sonho impossível e necessário para os desafios 2024: travar a luta ideológica para alargar as possibilidades do Lula III. 

A base econômica desse sonho, a economia brasileira, está com seu desenvolvimento ancorado no Arcabouço Fiscal, que já foi proposto numa versão desidratada. Assim como a Reforma Tributária fatiada que, ao não colocar os principais embates que politizam a sociedade, perde a oportunidade de alargar a margem de manobra do governo. 

Ou seja, se as propostas do governo já são negociadas no sentido de não tensionar, não apresentam o programa necessário, que estimule um debate pedagógico para manter a sociedade mobilizada, se renuncia a possibilidade de vir a barganhar – na correlação de forças desfavorável do Congresso – a desidratação de tais políticas econômicas. 

A luta ideológica passa por inverter a lógica. Condicionar a Regra Fiscal às necessidades de desenvolvimento nacional, ao invés de modelar os programas sociais a partir da equação “receita menos despesa”.  

Passando pelo filtro de sonhos, o que foi o desempenho econômico do primeiro ano do Lula III, em que a chamada “PEC da Transição” abriu espaço fiscal que possibilitou turbinar Bolsa Família, elaborar um conjunto de políticas socioambientais, aumentar salário-mínimo, reajustar bolsa de estudo e pesquisa, limpar o nome de seis milhões de brasileiros pelo Desenrola. 

O governo Retomou o PAC, NovoPAC, sustentou a mudança da política de preços da Petrobras com impacto no preço dos combustíveis, retomou política de conteúdo nacional, deu consequência à Transição Energética e ao Plano de Transformação Ecológica. Poderíamos agregar aqui a  recolocação do Brasil na geopolítica mundial, o crescimento do PIB, emprego e inflação baixa. 

O Brasil voltou a ser destino de fluxos internacionais de capital e a paulatina valorização do real faz com que o consumo seja mais acessível.

Voltou a ser possível o sonho de três refeições.

E quem não sonha com ações concretas contra o garimpo ilegal, o contrabando de madeira e a meta do desmatamento zero na Amazônia? 

Esses são sonhos sustentáveis? A pergunta é: onde está sendo preparada as condições para o investimento portador de futuro, aquele capaz de gerar empregos de qualidade. Esse sonho, que está maduro na sociedade brasileira, só se realiza com a retomada da política industrial do país, em que se gere trabalho portador de dignidade. 

A economia popular e solidaria gesta embriões do processo de trabalho social que precisam amadurecer junto a um robusto plano de industrialização soberana do país. 

O outro embrião da política de industrialização é a indústria concebida como meio para atingir missões de saneamento, energia, mobilidade e etc, articulada com a transição ecológica. Será esse sonho muito ousado? 

Pesadelo é o governo Lula III não imprimir a marca de governar com a sociedade e testar “os limites da política possível”. A correlação de forças na sociedade precisa da dimensão da disputa ideológica para encontrar o caminho desafiador de pressão e sustentação do governo em 2024. 

O governo, por sua vez, e os gestores públicos não podem ter medo da luta popular. Se o governo não conseguiu nem começar a resolver o problema das 80 mil famílias acampadas na luta por reforma agrária, coloca na pauta a atualidade do sonho que vai celebrar 40 anos em 2024. Um dos principais ensinamentos do Movimento de Travalhadores Rurais Sem Terra (MST), que completa quatro décadas de existência no próximo ano, é de que os os “nossos direitos só a luta faz valer”!

Vincular o enfrentamento à fome no país à necessidade da Reforma Agrária Popular, da agroecologia e da produção de alimentos saudáveis, produzidos a partir da luta – com devida dotação orçamentária para ter escala – é uma realidade que precisa deixar de ser devaneio no próximo ano.  

Esse Lula III teve que se despedir daquele sonho de que a melhora das condições econômicas gera gratidão do povo com relação ao governo, partido ou presidente. Numa sociedade polarizada a primazia é da política, não da economia. Não temos mais tempo para acordar para o desafio da disputa ideológica. A batalha das ideias na sociedade brasileira passa por massificar o debate nacional de que país o Brasil quer ser, debate esse indissociável do enfrentamento ao Imperialismo.  

A brisa sopra e move o pêndulo no sentido da esquerda, retomando aos poucos o vínculo com o povo, por meio da solidariedade e da política pública buscando caminhos da gestão participativa, seja por meio dos conselhos, conferências, diálogos, cadernos de reivindicações dos movimentos ou por meio da participação por núcleos de base, retomada na metodologia dos agentes populares. Há ainda a trincheira da participação digital, que foi uma das dimensões do PPA. Tiveram as caravanas federativas, que fizeram a administração federal dialogar com os entes federados sobre as políticas públicas.  O desafio que o governo Lula III precisa responder em 2024 para ter fôlego é de como o povo, mulheres, jovens, negros, a população de rua e trabalhadores participam da política.

O próximo ano nos convida a curar e discernir o que é pesadelo, sonho e sonho impossível. É o ano da ação, de se colocar em movimento. Revestir nossa luta com o trançado da Educação Popular para dar resistência. Por meio dela, aproximar o trabalho de base das políticas sociais do governo. Com esse amuleto, fazer das eleições municipais a renovação do compromisso da luta institucional como propulsora da luta de massas e da luta ideológica. Sonhar mais um sonho impossível. Lutar quando é fácil ceder. Vencer o inimigo invencível.  Voar num limite improvável. É nossa lei, é nossa questão, virar esse mundo em organização, organização e organização. 

*** Olivia Carolino Pires é militante do Movimento Brasil Popular

Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular

Edição:  Ana Carolina Vasconcelos

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