Artigo | O espírito do Natal: luta, solidariedade e cozinhas populares para combater a fome

Foto: Vinicius Braga
Organização nas periferias dos centros urbanos tem impulsionado o combate à fome na prática / Foto: Vinícius Braga

O Natal, mesmo sendo uma celebração cristã, traz uma simbologia que está no imaginário dos brasileiros de maneira geral e nos remete à solidariedade, à partilha e ao amor ao próximo como valores a serem cultivados.

Aos sentidos do Natal trazidos pela tradição cristã, os movimentos populares agregam alguns mais: o sentido da luta, da solidariedade de classe e da organização coletiva para o enfrentamento de problemas comuns. Sentidos que partem da identificação do outro como um igual, um irmão de lutas e batalhas, um companheiro na construção de um mundo melhor e mais justo para todos. Para além dos sentidos religiosos que são celebrados nesta data, o Natal também é um momento de reforçarmos esses valores e o compromisso de luta por uma vida digna e pela comunhão entre nós.

Para as periferias brasileiras, a solidariedade, especialmente no período de Natal, relaciona-se fortemente ao combate à fome e à insegurança alimentar. É impossível pensar na luta pela transformação e pela emancipação quando não se tem o que comer. 

O acesso à alimentação adequada é um direito básico que possibilita inclusive a luta por outros direitos. Não há luta se há fome; não há autonomia se há fome. Quem tem fome não apenas tem pressa, como também não tem o direito mais básico de qualquer cidadão: o direito de escolha. Quem não tem a sua subsistência garantida, quem precisa lutar por cada refeição, se torna refém da luta diária por seu próprio sustento; a autonomia e o protagonismo popular na política e na vida dependem da garantia do prato cheio. 

A alimentação é parte central e fundamental da vida de qualquer pessoa, não só pela necessidade biológica de adquirirmos a energia necessária para realizar todas as nossas atividades diárias, mas também pela hora de comer ser um momento de prazer. Um momento no qual saciamos a fome da barriga e que também pode ser um momento de socialização, de festividade; um momento de comer aquela receita da nossa infância, relembrar e compartilhar. 

A comida pode ser uma demonstração de afeto, como aquela sopinha que fazemos para o familiar que está doente, aquele bolo de aniversário para alguém querido, aquela feijoada de domingo para receber os amigos em casa. A comida é uma forma de nutrir não só o corpo, mas também a mente e o coração, fortalecer vínculos e memórias, reafirmar culturas e tradições. O direito à alimentação, então, é muito mais do que o direito a se nutrir da energia suficiente para acordar todos os dias, trabalhar e voltar para casa; o direito à alimentação se relaciona com muitos outros aspectos da vida.

Esse direito tão básico e ao mesmo tempo tão importante vem sendo negado a milhões de brasileiros e brasileiras. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2022, no Brasil, 70,3 milhões de pessoas estavam em estado de insegurança alimentar moderada, quando possuem dificuldade para se alimentar. Alem destas, 21,1 milhões de pessoas passaram por insegurança alimentar grave, ou seja, fome. Isso significa um total de 32,8% dos habitantes do nosso país que não têm acesso a uma alimentação minimamente adequada diariamente

Diz-se “minimamente adequada” porque, para além do número expressivo de brasileiros em situações mais alarmantes em termos de acesso à alimentação, é preciso considerar não só a quantidade de alimentos aos quais temos acesso, mas também a que tipo de alimentos. Isso nos leva a identificar que é um grupo muito pequeno o que de fato tem acesso a alimentos diversificados, orgânicos e in natura, enquanto a grande maioria da população é empurrada para uma alimentação baseada em alimentos industrializados e ultraprocessados, cheios de agrotóxicos. De forma imediata, esses produtos parecem ser mais baratos, mais acessíveis e de mais fácil preparo, mas são muito mais nocivos à saúde.

De acordo com reportagem do portal “O joio e o trigo”, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, o combate à fome foi estabelecido como uma prioridade do governo. Como resultado desse movimento, o Brasil deixou o Mapa da Fome das Nações Unidas, tendo menos de 5% da população em estado de insegurança alimentar grave, ou seja, fome. Agora, no terceiro mandato de Lula, doze anos depois, lançou-se o programa Brasil sem Fome, que tem como meta a erradicação da insegurança alimentar grave até 2030, isto é, que o país volte ao patamar que estava em 2014, através da retomada de políticas de governos anteriores e desativadas durante o governo Bolsonaro. Entre as medidas do governo Lula estão a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa de Cisternas, o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), e a manutenção do Bolsa Família no valor de R$600,00. 

Apesar de fundamental, a retomada desses programas têm se demonstrado insuficiente para o tamanho dos desafios que temos nesse campo. Em 2014, o combate à fome encarava um contexto completamente diferente tanto na correlação política de forças na sociedade – com uma extrema direita muito menos fortalecida -, quanto  na situação do sistema alimentar brasileiro. Hoje vivenciamos um contexto de um avanço sem precedentes no agronegócio e no uso de nossas terras para a produção de commodities tais como a soja e o milho, majoritariamente destinados à exportação. 

Mesmo nesse contexto mais desafiador, os recursos destinados a programas como o PAA, por exemplo, também foram muito inferiores à demanda. Da mesma forma, a burocracia governamental tem atrasado a assinatura de contratos para colocar o Programa em funcionamento. Em outras palavras, ainda que as metas assumidas pelo governo no contexto de reconstrução do Brasil pós Bolsonaro e pós Pandemia sejam bastante tímidas,  essas iniciativas em curso não têm se realizado a contento.

É necessário que a prioridade número 1 do governo seja colocada no orçamento, e que as medidas de combate à fome sejam mais contundentes no próximo ano. Também é fundamental que essas iniciativas sejam acompanhadas de políticas de participação social e educação popular, que coloquem os beneficiários como sujeitos ativos da reconstrução nacional e que possam multiplicar a organização popular nos territórios.

Nesse sentido, os movimentos populares vêm fortalecendo a construção de Cozinhas Populares pelo Brasil afora, combinadas com a realização de processos formativos de agentes populares de alimentação. Esses agentes populares são membros das comunidades urbanas e atuam como mobilizadores do território, criando uma rede de solidariedade que coloca as pessoas da comunidade como protagonistas na reflexão sobre as contradições sociais a nível nacional e local. Através disso, na atuação coletiva para subverte-las através de ações que podem ir desde a distribuição de marmitas, banquetaços, até a construção de cozinhas populares ou outras ferramentas de organização comunitária e geração de renda.

Nesse período de Natal, os agentes populares dos mais diversos cantos do Brasil organizaram ações em seus territórios na Jornada Nacional de Solidariedade Contra a Pobreza e a Fome, como uma forma de, mais uma vez, colocarmos luz à uma questão central para a sociedade brasileira. Através da organização coletiva, solidariedade é exercitar na prática os valores e a simbologia do Natal, desejando um natal sem fome, com esperança e muita luta. É fazer a partilha de alimentos, mas também de ideias e sonhos, é partilhar um Projeto Popular para o Brasil!

Este é um artigo de opinião pessoal e não necessariamente representa a posição do conjunto do Movimento Brasil Popular

Edição:  Emilly Firmino

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