Até quinta-feira, 1,45 milhão de pessoas em 417 das 497 cidades do estado haviam sido afetadas. Gilvar Rocha/Agência Brasil
“Isso vai abalar as mentalidades dos eleitores”, afirma especialista
Matéria de Zoya Teirstein para a a Grist, traduzida por Marcos Barbosa
Vitor Martinez, um músico e líder comunitário de 25 anos, mora em Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul — o estado mais ao sul do Brasil. O bairro de Martinez faz fronteira com o Lago Guaíba, ao redor do qual estão concentradas as principais atrações de Porto Alegre. Em um dia ensolarado de 80 graus Fahrenheit no final de março, as pessoas andavam de bicicleta, corriam e passeavam ao longo do calçadão que cerca o lago.
Os compradores se dirigiam a um shopping no térreo de um hotel Hilton DoubleTree novinho em folha no meio do bairro. Mais de 23.000 pessoas de todo o mundo se reuniram a algumas milhas de distância em um centro de conferências perto do centro histórico da cidade para discutir o futuro da tecnologia e dos negócios na América do Sul. Essa versão de Porto Alegre — cuidada e próspera — é agora uma lembrança distante, disse Martinez.
Na sexta-feira passada, após uma semana de chuvas incessantes que despejaram polegadas de água no sul do Brasil, o Lago Guaíba — tecnicamente um rio que recebe águas de outros cinco afluentes — transbordou e invadiu Porto Alegre. As águas inundaram vastas áreas da cidade, incluindo seu centro histórico e aeroporto, e causaram danos indescritíveis em todo o resto do Rio Grande do Sul.
Até quinta-feira, 1,45 milhão de pessoas em 417 das 497 cidades do estado haviam sido afetadas por inundações e deslizamentos de terra. Quase 100.000 residências foram danificadas ou destruídas, 155.000 pessoas estão deslocadas ou desabrigadas, e o número de mortos chega a 113, com mais de 140 pessoas ainda desaparecidas. O Lago Guaíba tinha acabado de começar a recuar quando mais chuva começou a cair na sexta-feira.
“Não há precedente no Brasil para a crise que estamos vivenciando no nível estadual”, disse Jonatas Rubert, outro morador de Porto Alegre, na quinta-feira à noite. “A apreensão sobre o que acontecerá nos próximos dias é imensa.”
Martinez tem se abrigado em seu pequeno apartamento com sua mãe e avós, que foram forçados a evacuar suas casas por conta do avanço da inundação. O apartamento, situado em terreno elevado, escapou do pior da inundação. Em Porto Alegre e outras partes do estado, pessoas que perderam suas casas para as águas estão sobrevivendo com suprimentos limitados de alimentos e fontes escassas de água limpa. “Como a água está tão alta, ainda não sabemos quantas pessoas morreram”, disse Martinez.
As inundações no Rio Grande do Sul estão se configurando como um dos piores desastres ambientais da história do Brasil. Na quinta-feira, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva anunciou um pacote de socorro e reestruturação de 50 bilhões de reais (US$ 9,7 bilhões) a serem implantados imediatamente no sul do Brasil — um investimento histórico que, segundo ele, representa a “primeira” rodada de ajuda.
Vários fatores ajudaram a produzir uma catástrofe dessa magnitude. Especialistas nomearam as mudanças climáticas e o El Niño, o fenômeno climático natural que periodicamente altera as condições oceânicas e atmosféricas, como os principais culpados pela intensidade e pelo rápido alagamento. No entanto, uma série de decisões do governo local, estadual e federal no Brasil, ao longo da última década, também contribuiu para o efeito devastador que as enchentes tiveram nas comunidades do Rio Grande do Sul, moldou a resposta humanitária inadequada ao sofrimento contínuo no local, e limitou a capacidade mais ampla do Brasil de se adaptar aos impactos cada vez piores das mudanças climáticas.
Especialistas disseram ao Grist que a escala astronômica e o custo das inundações podem marcar um ponto de inflexão na maneira como os brasileiros pensam sobre políticas ambientais e mudanças climáticas, particularmente a adaptação às mudanças climáticas — ajustes sistêmicos que podem proteger contra impactos futuros.
“Isso vai abalar as mentalidades dos eleitores”, afirma Carlos R. S. Milani, membro sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, uma think tank, e do Conselho Brasileiro de Desenvolvimento Científico, uma organização governamental. Se o desastre afetará as decisões tomadas por seus representantes eleitos ainda é uma questão em aberto.
O Rio Grande do Sul tem sido afetado por eventos recorrentes de grandes inundações este ano, um dos impactos das mudanças climáticas que os cientistas previram para o Brasil e a América do Sul em geral. Porém, as inundações são apenas um dos eventos climáticos extremos que os brasileiros experimentaram nos últimos 12 meses. No final de 2023, os rios na floresta amazônica atingiram históricos mínimos enquanto as temperaturas no Brasil bateram recordes de 138 graus F — uma das nove ondas de calor que assolaram o país no ano passado. Uma mulher de 23 anos morreu de parada cardíaca depois de ficar por horas na fila para um show de Taylor Swift sob temperaturas altíssimas. Em março, o Rio de Janeiro registrou um novo recorde de índice de calor: 144 graus F.
“Não tenho dúvidas de que as mudanças climáticas têm a ver com isso”, disse Raissa Ferreira, diretora de campanha do Greenpeace Brasil, referindo-se a esses eventos recentes. “O efeito estufa está se tornando mais potente.”
O El Niño, que se formou no ano passado e se estende até este ano, exacerbou os impactos climáticos severos em todo o Brasil, incluindo a seca na Amazônia e o aumento das chuvas nas partes sul do país. Os cientistas estão investigando se a intensidade do El Niño — que pode ser o mais forte em sete décadas — também é um sintoma do agravamento das mudanças climáticas.
Os impactos climáticos dos últimos 12 meses não deveriam ter pego o governo brasileiro de surpresa. Em 2014, a administração da então presidenta Dilma Rousseff encomendou um documento estratégico intitulado “Brasil 2040: Cenários e alternativas para a adaptação às mudanças climáticas”. O relatório foi visionário, embora excessivamente conservador: Muitos dos impactos climáticos que projetou, incluindo inundações extremas, vieram a ocorrer mais de 15 anos antes do previsto. O governo de centro-esquerda de Rousseff acabou enterrando o relatório, e os governos subsequentes falharam em assumir o comando.
O resultado é que o Brasil, o sexto maior emissor de gases de efeito estufa e uma potência global emergente, tem uma estratégia de adaptação climática apenas no nome. “A adaptação climática precisa ser implementada”, afirma Ferreira, “mas vemos sinais muito negativos no Brasil de que isso seja uma prioridade política”.
Enquanto isso, partidos políticos de extrema direita no Brasil passaram anos desmantelando proteções ambientais, evitando a ciência climática estabelecida e promovendo os interesses do setor agroindustrial em expansão do país em detrimento dos recursos naturais vulneráveis do país. A estratégia, fortemente contestada pelos grupos de esquerda e indígenas, tem recebido apoio consistente do público.
O Rio Grande do Sul, um estado altamente dependente da produção agrícola, especialmente de arroz e soja, votou duas vezes no ex-presidente brasileiro e ardente negacionista do clima Jair Bolsonaro por uma margem substancial. O prefeito de Porto Alegre e o governador do Rio Grande do Sul, ambos políticos de direita, eliminaram os orçamentos locais e estaduais de financiamento ambiental e de defesa civil.
O prefeito da cidade, Sebastião Melo, não gastou um centavo em melhorias nos sistemas de inundação da cidade em 2023, e fez cortes substanciais no programa municipal de prevenção a enchentes em 2021 e 2022. Porto Alegre poderia ter plantado manguezais e gramíneas para ajudar a absorver a água da inundação, estabelecido sistemas de alerta precoce para bairros em risco e construído muros e outras infraestruturas para manter a água do rio fora da cidade. Nenhuma dessas precauções foi tomada. Enquanto isso, o orçamento de 2024 do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, alocou menos de 50.000 reais — menos de US$ 10.000 — para preparação emergencial, evacuações, recuperação e outros aspectos da defesa civil.
“A palavra na rua é que o governador deixou 50.000 reais para a possibilidade de uma catástrofe como esta”, afirma Giordano Gio, cineasta de 31 anos morador de Porto Alegre. “Isso é tipo, o custo de um Honda Civic.” Em uma pesquisa nesta semana, 70% dos brasileiros disseram que investimentos em infraestrutura poderiam ter reduzido os riscos das inundações recentes.
As inundações levantam uma série de questões sobre o que acontece a seguir no Rio Grande do Sul e no Brasil em geral. Antes das inundações atingirem o estado, o governo Lula estava tentando reequilibrar o orçamento federal, reduzir o déficit nacional e reinvestir na classe média do Brasil. A crise pode embaralhar esses esforços.
As inundações, segundo Mauricio Santoro, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, “vão ter um impacto sério em termos de inflação, em termos de preços dos alimentos no Brasil. É uma notícia muito ruim para o governo de Lula num momento em que o presidente já tem muitos desafios em sua mesa.” Um desses desafios, e uma prioridade para Lula, é reduzir o desmatamento rápido da floresta amazônica. O desmatamento da floresta tropical, grande parte dele a serviço de expor mais terras aráveis para produção agrícola, é responsável por metade das emissões de carbono do Brasil.
A entrada de recursos federais no Rio Grande do Sul ajudará a reconstruir o estado, mas especialistas entrevistados e pessoas no território em Porto Alegre se perguntam o que acontece a seguir em relação à preparação para o clima. “Lula foi eleito em uma grande coalizão que tem muitas pessoas de direita nela”, disse Gio, o cineasta. Os partidos de esquerda controlam apenas um quarto das cadeiras da Câmara e do Senado do Brasil, o que dificulta a capacidade de Lula de aprovar legislação sobre mudanças climáticas. “Há muitas coisas acontecendo politicamente que podem afetar” uma possível política climática, afirma Gio.
Mais desastres ambientais afetarão o Brasil nos próximos meses. As altas temperaturas este ano devem produzir uma seca ainda mais severa na Amazônia, por exemplo, e os estados que cercam a floresta tropical estão entre os mais pobres do país. O Rio Grande do Sul, um dos estados mais ricos do Brasil, está melhor posicionado para se recuperar de um evento dessa magnitude do que a maioria das outras regiões do país. “Se isso pôde acontecer em uma das áreas mais rica do país, o que acontecerá se em seguida atingir uma área mais pobre?”, perguntou Milani. “A capacidade de se adaptar, de responder, é muito menor.”
Essa pergunta — o que acontece agora? — continuará ecoando muito depois que as águas da inundação se retirarem. “Como cientista político, eu tenho a intuição de que clima e meio ambiente serão muito debatidos em muitas eleições municipais em todo o país este ano por causa deste evento no Rio Grande do Sul”, disse Santoro. “Esta é uma luta política mais do que qualquer outra coisa neste momento.”
Em Porto Alegre, Martinez tem estado à frente de uma cozinha comunitária local e trabalhado com seus companheiros líderes comunitários para desenvolver sistemas para lidar com a entrada de ajuda humanitária enviadas por pessoas de todo o mundo. Para ele, assistir as pessoas em sua comunidade se ajudarem tem sido algo valioso no meio do horror contínuo. “Os governos locais nos abandonaram”, disse ele. “Não assistiremos nossos bairros serem destruídos e ficaremos de braços cruzados.”