A “Brigada de Solidariedade ao povo Gaúcho” é fruto do acúmulo das experiências históricas promovidas pelos movimentos populares. Foto: Emilly Firmino
Texto de Emilly Firmino e Vinícius Moreno, militantes do Movimento Brasil Popular
A enchente que atingiu o estado do Rio Grande do Sul no final deste abril de 2024 pode ser caracterizada como uma das principais catástrofes socioambientais ocorridas no Brasil. Muito mais do que um evento climático, ela traz à tona a realidade do descaso do poder público estadual e municipal com o investimento em planejamento, infraestrutura e estratégias de combate a desastres ambientais recorrentes.
Esta tragédia, que atingiu mais de 2 milhões de pessoas, 478 municípios e deixou 182 mortos confirmados, 29 desaparecidos e 806 feridos, já era previsível nos estudos científicos e nos dados ambientais registrados por órgãos públicos e redes de pesquisa. Mais do que dados de projeções, também já havia sido pré-anunciado o caminho que tal descaso poderia levar quando, em 2023, as enchentes deixaram 54 mortes e mais de 400 mil indivíduos afetados.
O grau de desmatamento do Pampa, as secas históricas, a concentração de chuvas e o frio extremo, entre outros eventos climáticos, evidenciam as consequências da crise ambiental no Rio Grande do Sul. Fatos que não são meramente mudanças naturais, mas sintomas da ganância do agronegócio, do modelo capitalista de produção e consumo, que subjuga a imensa maioria da população frente ao lucro.
Neste modelo, em que a manutenção das riquezas das elites está acima de tudo, a classe trabalhadora é quem sofre com a perda de casas, seus bens materiais e afetivos; sendo levada a uma realidade de miséria e fome. O que torna o problema ainda mais profundo é que tragédias dessa natureza não são uma particularidade gaúcha, elas vêm ocorrendo cada vez mais em outros estados, com episódios de gravidade similar e que podem se repetir em diferentes áreas do território nacional.
A repetição cada vez mais frequente de tragédias como esta coloca na ordem do dia a urgência de pensar qual o papel dos movimentos populares tanto para superar a devastação na vida das pessoas e na infraestrutura das cidades; quanto em como minimizar impactos e evitar futuros episódios ainda mais graves. Além de ações emergenciais, que respondam às necessidades imediatas do povo, é necessário atentar em como se dará o processo de implementação de políticas públicas e reconstrução da estrutura urbana.
Esta função, em maior parte, é responsabilidade do poder público; mas, em um contexto de permanente disputa política, institucional e ideológica, cabe aos movimentos populares e à sociedade civil ter papel protagonista. Só assim, com o povo organizando e nas ruas, será possível orientar o sentido e as prioridades da ação estatal, combatendo a perpetuação de uma agenda política que explora a natureza e a classe trabalhadora visando a manutenção e intensificação da acumulação de lucros.
Parte desse processo é olhar atentamente não só para a realidade do Rio Grande do Sul, mas para o contexto de profunda crise climática em que estamos inseridos. Ao contrário do que foi afirmado pelo governo de Eduardo Leite (PSDB), para reconstruir o estado e evitar que tragédias como esta aconteçam novamente, é necessário sim apontar culpados e elencar os erros.
Portanto, é tarefa central das forças populares denunciar os responsáveis, refletir sobre as saídas estruturais necessárias e conceber meios para a construção de um novo projeto de sociedade. Afinal, sem reais mudanças estruturais na forma de produção e consumo, episódios como esses tendem a ser recorrentes e, para que nosso povo não viva sucessivas tragédias, cabe aos movimentos populares terem uma resposta político-organizativa para incidir em tais contextos.
Organização, reconstrução e caminhos para viabilizar uma nova sociedade
Na contramão ao poder público e da elite gaúcha, contra o negacionismo ambiental e o assistencialismo paternalista, um conjunto de movimentos populares – Movimento Brasil Popular (MBP), Levante Popular da Juventude, Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e Movimento Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – se juntaram mais uma vez em um processo de organização unitária. Combinando ações de trabalho de base, formação política e luta popular, a “Brigada de Solidariedade ao povo Gaúcho” é fruto do acúmulo das experiências históricas promovidas pelos movimentos populares.
Mais do que algo pontual, as ações de solidariedade são parte de um processo e de um método de ação prioritário do nosso campo político, que tem semeado transformação social e esperança por todo o Brasil; especialmente após o contexto da pandemia de covid-19. Esta solidariedade, caracterizada por Paulo Freire enquanto “solidariedade ativa”, se desenvolve a partir do uso da educação popular enquanto método de trabalho de base, que se propõe a romper com as práticas individualistas do neoliberalismo.
A solidariedade ativa carrega consigo uma pedagogia criativa em que o povo se descobre povo a partir da atividade compartilhada e consciente. Mais que isso, tem como princípio o estímulo da ação coletiva e do protagonismo dos sujeitos do território, que passam a compreender que os problemas não são individuais, mas sim coletivos, e só podem ser solucionados a partir de saídas coletivas.
Desta forma, ao atuar em conjunto com a comunidade, os brigadistas constroem iniciativas para solucionar as demandas locais a partir da força criativa popular dos territórios. No contato inicial, a intenção é levar esperança, afeto e cuidado às famílias que foram diretamente ou indiretamente atingidas pela enchente. De médio e longo prazo, o objetivo é construir uma política de solidariedade pautada na soberania popular, que esteja na ordem do dia e que se constitua enquanto uma política pública capaz de abrir horizontes de mudanças feitas a partir das mãos do povo.
Apostamos neste tipo de ação solidária, que tem como princípio a ativa participação popular, porque ela é parte elementar da semeadura e consolidação de uma força social capaz de pressionar o poder público e as instituições da justiça para a construção de uma sociedade livre das contradições capitalistas. Ela não apenas põe o sujeito à organização, mas promove o avanço da consciência ao transformar cada um em “pessoa histórica”; em que, tomando consciência de si, tem consciência também de que as contradições que a oprimem não são algo dado, mas sim parte de um sistema que precisa ser subvertido.
Ação popular para reconstruir o Rio Grande do Sul
Esse conjunto de militantes de vários estados brasileiros chegaram à capital gaúcha em 28 de junho reunindo cerca de quarenta pessoas de oito estados diferentes: Amazonas, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, São Paulo e Goiânia, além do Distrito Federal. Os brigadistas, que são os nossos Agentes Populares, são pessoas engajadas na costura de uma rede popular de solidariedade entre os sujeitos de um território, que trabalham multiplicando os saberes daquela comunidade, estimulando o entendimento crítico sobre o acesso a direitos e os horizontes políticos de uma vida digna comum.
Entre formações políticas conjuntas e momentos de imersão e vivência nos territórios afetados pelas enchentes, eles foram divididos em pequenos grupos distribuídos em três cidades – Canoas, Eldorado e Porto Alegre -, onde estão distribuídos em oito comunidades diferentes. O objetivo é fortalecer os coletivos locais e construir a mística do trabalho popular comunitário através de ações como: produção de marmitas, mutirões de limpeza, reparo nas casas, montagem de cestas básicas, pintura de murais em algumas das associações etc. Além disso, via a aplicação de questionários com as famílias das comunidades, têm-se realizado o levantamento das principais demandas econômicas, jurídicas e de assistência social.
No conjunto das formas de atuação, cabe uma atenção especial às cozinhas populares, que vêm se tornando verdadeiros pontos organizativos e que comprovam a alimentação enquanto ação política. Elas reafirmam que a fome é uma das faces mais repugnantes de um sistema que mercantiliza a vida à medida que seleciona quem pode e quem não pode comer; não só isso, entre aqueles que podem comer, escolhe quem pode e quem não pode se alimentar de fato.
É nestas cozinhas populares, em meio a tantas mãos, do caminho entre a boca do fogão e a boca dos trabalhadores, que se materializa o porquê do alimentar ir muito além da produção e reprodução dos alimentos. Cada marmita entregue é também o alimentar do nível de consciência política, ao possibilitar um espaço organizativo e também condições para que o povo se organize coletivamente para lutar pelos seus direitos.
Dos diálogos da ruas, aos mutirões de limpeza, o estudo e nas cozinhas, com a “Brigada Nacional de Solidariedade ao Povo Gaúcho”, juntamente às ações locais preexistentes e aquelas que nasceram durante o enfrentamento das enchentes; germina mais um exemplo da capacidade da organização popular em alterar os rumos da história. Uma genialidade carregada de mística, saber coletivo, companheirismo, camaradagem e convicção de que dias melhores são sim possíveis. Uma convicção de que, entre o desafio da ação frente às demandas emergenciais e a necessidade de construção de um novo modelo de desenvolvimento, não há caminho possível que não aquele promovido pelo poder popular. É por este caminho que seguimos.