Artigo | Nós, as mulheres, ainda estamos aqui contra o esquecimento da nossa própria história

*Texto de Vittoria Paz, militante do Movimento Brasil Popular

Nesse momento em que todas as atenções estão voltadas para a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro e a indicação da atriz e do filme “Ainda estou aqui” ao Oscar, é importante falarmos cada vez mais sobre a resistência à ditadura empresarial militar e suas histórias de luta, especialmente das histórias das mulheres. 

Ao mesmo tempo em que, no Brasil, temos o debate em torno da memória e em torno do nome da Eunice Paiva em destaque, assistimos o retorno de Trump à Casa Branca e uma ascensão do fascismo no mundo. Na internet encontramos textos e vídeos comparando a realidade vivida e a série The Handmaids Tale, focando na subjugação feminina em tempos de crescimento da extrema direita. Alguns questionamentos colocados são:  estamos cada vez mais perto de viver as distopias que lemos nos livros e vemos na TV, ou já estamos vivendo uma? O que fazer contra esse processo que parece crescer mundialmente? 

A preservação da História, seu estudo e sua compreensão é parte essencial da nossa construção de presente e de futuro. Quando falamos de resistência ao cenário atual, é importante resgatarmos histórias e narrativas de perda, de violência e repressão do que foi a ditadura no Brasil, mas sobretudo histórias de luta, de resistência e de vitórias também. Sendo assim, quando vemos um país em que o bolsonarismo é crescente desde 2018, exaltar a história de uma mulher como Eunice Paiva, que resistiu à ditadura sorrindo, lutando e desafiando aqueles que levaram seu marido e ameaçavam sua família, é fundamental manter esse assunto e aprofundarmos ele. Na televisão, no cinema, nas rádios, nas escolas, na internet, é mantendo viva a história sobre a ditadura e sobre mulheres como Eunice que trilhamos um caminho contra o esquecimento sobre a nossa própria história para que nunca mais deixemos se repetir. 

É inspirador, dentro das histórias de resistência, encontrarmos figuras femininas como Eunice Paiva, que são historicamente apagadas. Assim como Eunice, há milhares e milhares de mulheres que resistiram à ditadura militar no Brasil e merecem ter suas histórias ecoadas e seus nomes referenciados como símbolo de resistência. 

Podemos citar diversos nomes de mulheres que estiveram envolvidas nesses movimentos, em outros, ou lutando de outras formas, exemplos não nos faltariam. Duas lutadoras que retratam um pouco dessa diversidade de atuações e formas de atuação política são Amelinha Teles, uma referência na luta até os dias atuais. Amelinha é mineira, foi presa política, participou na produção do Jornal Brasil Mulher, foi militante do PCdoB, do Movimento de Custo de Vida, do Movimento pela Anistia, fundou a União de Mulheres de São Paulo e lá milita até hoje. E Jessie Jane Vieira, atualmente professora aposentada da USP, Jessie foi militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional), e teve uma parte da sua história retratada na série Jessie e Colombo. 

De forma ampla, a história de luta e resistência na ditadura conta com a forte contribuição das mulheres, na luta armada, nos partidos e movimentos de esquerda e nas ruas. Um forte exemplo é a construção dos movimentos populares em meados da década de 1970 como foram os Clubes de Mães, o Movimento pelo Custo de Vida, Movimento por Creche e o Movimento pela Anistia. Esses movimentos surgem a partir de espaços em que as mulheres podiam dialogar sobre suas experiências e se encontrar nas questões em comuns ligadas à raça, classe e gênero, sobretudo a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Foi, então, por meio da compreensão inicial de suas realidades, dificuldades e lutas em comum, que as mulheres, trabalhadoras, mães, donas de casa, em sua maioria negras e que viviam nas periferias dos centros urbanos, passaram a se organizar a partir de suas pautas em comum. 

A atuação em partidos, movimentos, organizações, e muitas vezes na luta armada trouxeram para as mulheres também a realidade da clandestinidade, do risco de prisão, tortura e morte, não apenas sua, mas também de familiares e amigos. Além de todos os riscos citados, as mulheres ainda lidavam com o machismo e todas as dificuldades por estarem inseridas em espaços pensados a partir da lógica masculina, e em uma sociedade que ainda pouco abraçava a luta das mulheres. 

Então, essas mulheres tinham que lidar não apenas com as violências decorrentes ao momento vivido, mas também com as violências “comuns” às mulheres dentro da sociedade. Ainda que em espaços de esquerda, elas eram limitadas aos trabalhos de cuidado e trabalhos domésticos, que eram considerados “trabalho de mulher”. Sendo assim, havia uma transgressão ainda maior na resistência, pois havia a resistência diária também ao machismo da sociedade e dos companheiros, quebrando preconceitos dentro das famílias, organizações de esquerda e sociedade. 

Assim como Eunice Paiva, Amelinha, Jessie, muitas mulheres são referências para nós na construção diária do feminismo e em torno do debate da luta por memória e verdade no Brasil.