A Segunda Abolição e o Sentido Político do Plebiscito Popular

A classe trabalhadora mais pauperizada no país é composta majoritariamente por negros. Foto: Reprodução/MNU

*Texto de Florence Marcolino e Nonato Nascimento, do Setor Nacional de Igualdade Étnico-Racial do Movimento Brasil Popular

Hoje, diversas organizações do Movimento Negro Brasileiro colocam em pauta os sentidos e significados do movimento abolicionista e sua importância histórica para compreender a formação social brasileira e as lutas de libertação frente à exploração e à opressão do povo negro. As marcas da abolição tardia da escravidão atravessam profundamente toda a estrutura da sociedade brasileira, reverberando em desigualdades estruturais. 

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 57% da população é negra, e esse grupo representa 55% das/os trabalhadoras/es do país. A estrutura econômico-social brasileira é atravessada por conflitos raciais, sexuais e de classe, que revelam os níveis alarmantes de desigualdade, bem como as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora negra.

Já o relatório da Oxfam Brasil, publicado em julho de 2024, apresentou dados preocupantes sobre o avanço da precarização entre a classe trabalhadora negra do campo brasileiro. De acordo com a pesquisa, 69,6% das/os trabalhadoras/es do campo são negras/os, e 58,3% atuam sem as garantias previstas pela legislação trabalhista. 

Dados como esses, revelam que a classe trabalhadora mais pauperizada no país é composta majoritariamente por negros. Seja no campo ou na cidade, a situação e o lugar do negro hoje não podem ser explicados apenas pela herança da escravidão, mas pelo racismo como ideologia de dominação e exploração, resultando em injustiças históricas pelo que também entendemos como capitalismo racial e dependente. Significa dizer que o racismo neste país há décadas tem gerado mais valor ao capital ao precarizar e legitimar condições de trabalho inferiores para os negros, criando desigualdades que assolam e ameaçam as condições de vida desta população. 

Por isso, ao analisarmos essas informações sobre as condições de trabalho da população negra no Brasil, é fundamental partir do processo histórico e econômico de uma formação social enraizada em projetos e mecanismos de produção de exclusão social, econômica e territorial do negro no Brasil. Essa exclusão histórica contribuiu para perpetuar a produção da desigualdade racial no mundo do trabalho, não compreender plenamente a contradição entre raça e classe, e negligenciar o racismo como elemento central na formação e continuação do capitalismo brasileiro é um erro de apreensão de análise da realidade brasileira que muitos da esquerda vem cometendo a tempos. 

Como bem demonstra o intelectual orgânico do movimento negro, Dennis de Oliveira, no livro Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica, a origem do racismo e sua base de sustentação ao afirmar que o racismo é “[…] produto de uma estrutura sócio-histórica de produção e reprodução de riquezas. Portanto, é na base material das sociedades que se devem buscar os fundamentos do racismo estrutural” (Oliveira, 2021, p. 67). 

Assim, reivindicamos uma segunda abolição, colocamos em movimento — e no debate público — as contradições estruturais da sociedade brasileira, que afetam diretamente as condições de vida da classe trabalhadora negra. Mas também recuperamos o sentido histórico do movimento abolicionista para atualizar sua potência e apontar os desafios do tempo presente, marcados pela precarização e pelas condições indignas de trabalho da população negra.

Dos quilombos as favelas, junto com os povos do campo e das florestas, o negro é uma unidade histórica de resistência que atua como sujeito político e com força social para enfrentar um inimigo histórico, o capital. Os movimentos negros no Brasil são assim, a ponta de lança na denúncia dos diferentes níveis de exploração e opressão. Ao mesmo tempo, são propositores de lutas concretas pela libertação negra das amarras impostas pelos métodos de acumulação do capital, pelo encarceramento em massa e pelo genocídio da juventude negra.

Nesse cenário, movimentos populares, sindicatos, igrejas, religiões de matriz africana e partidos lançaram o Plebiscito Popular sobre a redução da jornada de trabalho, a escala 6×1 e a taxação dos super-ricos. A proposta dialoga diretamente com as condições de vida da classe trabalhadora negra — seus desejos, seus sonhos e suas possibilidades de viver com dignidade e qualidade.

A pauta do plebiscito, apresentada pelas organizações populares e sindicais, revela e coloca na ordem do dia o debate histórico das contradições estruturais que atravessam o cotidiano das trabalhadoras e trabalhadores do Brasil. O Movimento Negro Brasileiro é protagonista dessa iniciativa ao reconhecer, nas propostas em debate, questões centrais para a vida do povo negro.

O plebiscito popular é a nossa tarefa deste ano, e deve ser vista como uma jornada pedagógica para conversar com a sociedade e resgatar o histórico de lutas negras radicais, apontando quem são os trabalhadores que mais sofrem com as dificuldades impostas pela escala 6×1. Por isso, reforçamos: é de suma importância que o conjunto da militância do Movimento Negro Brasileiro fortaleça e coordene as ações territoriais do Plebiscito Popular. Cada quilombo, terreiro, quebrada, favela, escola e universidade com presença negra devem colocar o plebiscito em pauta — como espaço de reflexão sobre a abolição inacabada e os desafios históricos e estruturais da classe trabalhadora negra.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a posição do Movimento Brasil Popular