O pensamento negro radical e a prática militante de Flávio Jorge: presença ancestral e continuidade 

Flavinho esteve presente na articulação política e na formação do pensamento negro radical contemporâneo. Foto: Reprodução

Texto de Nonato Nascimento e Thays Carvalho, da Coordenação Nacional do Movimento Brasil Popular e do Setor Nacional de Igualdade Étnico-Racial

No último dia 6 de junho de 2025, organizações do movimento negro e do campo popular no Brasil e no mundo fizeram memória da presença ancestral e do legado militante do companheiro de muitas lutas e sonhos, Flávio Jorge — o “Flavinho” – da Soweto Organização Negra e da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN). Um ano após sua passagem ao Orum, celebramos sua presença e continuidade ancestral nas lutas de combate ao racismo e a todas as formas de opressão e exploração que atingem a comunidade negra e a classe trabalhadora.

Flavinho contribuiu de forma significativa para as vitórias e conquistas do povo brasileiro, para o enfrentamento ao racismo, para a consolidação de importantes políticas públicas de igualdade racial e para construir um projeto popular para o Brasil. Sua trajetória é marcada por contribuições fundamentais para a organização do Movimento Negro em âmbito nacional e internacional. Foi um dos principais articuladores e porta-voz do 1º Encontro Nacional de Entidades Negras – ENEN, realizado em 1991, e da histórica Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, realizada em 20 de novembro de 1997.

Como tantos outros intelectuais negros, Flavinho foi um homem que tomou partido. Teve atuação decisiva na fundação do Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras e da criação da Comissão Nacional de Negros e Negras do PT, sendo o primeiro Secretário da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do partido. Teve papel central na formulação e criação da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), que iniciou um processo necessário de escuta e institucionalização das pautas do Movimento Negro.

É possível identificar sua digital política tanto no processo de organização do movimento negro contemporâneo quanto nas políticas públicas de promoção da igualdade étnico-racial. Sua capacidade de construir unidade e trabalho coletivo entre as diversas organizações foi essencial para ampliar o poder de incidência política do movimento negro — tanto no campo institucional quanto na luta popular por políticas de reparações. 

Fazer memória de sua trajetória política é reafirmar o compromisso negro com a revolução brasileira e atualizar os sentidos do Protesto Negro impulsionado pelas organizações negras. Ao seguir seus passos, é possível reconhecer a intencionalidade de sua militância e de sua escrita insubmissa, que influenciou de maneira decisiva na formação de quadros políticos negros preparados para enfrentar os desafios estruturais vivenciados pelos Condenados da Terra.

Flavinho esteve presente na articulação política e na formação do pensamento negro radical contemporâneo. Foi colaborador incansável do jornal PT Notícias – Semanário do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores –, contribuindo com reflexões teóricas e estratégicas fundamentais na agenda de combate ao racismo. Na edição nº 55, de 25 de novembro a 1º de dezembro de 1997, alertou a militância para a necessidade de “Ampliar a Consciência Negra!”, afirmando:

“O que está em disputa é a consciência negra sobre qual tipo de democracia estamos vivendo e sobre qual é a sociedade que queremos e estamos construindo, sem hipocrisia, sem opressão e livre dos valores que dão sustentação ao racismo. Não tenhamos ilusão – nada ocorrerá de maneira suave ou cordial, mas sim por meio de grandes e estruturais transformações da sociedade brasileira.”

Seu pensamento e prática política eram de natureza profundamente revolucionária. Foi um defensor das lutas de libertação nacional no continente africano e compreendia o papel pedagógico das lutas anticoloniais.

Ao demarcar o sentido político da consciência negra de forma ampliada, Flavinho contribuía de maneira incisiva para o debate sobre a intencionalidade da ação política do movimento negro em torno de uma agenda estrutural de transformação da realidade brasileira. Em tempos de crises de rumo e de perspectiva, o pensamento de Flávio Jorge segue sendo um dos aportes fundamentais para o entendimento de que não “… é possível amenizar o racismo e ao mesmo tempo implementar a cartilha neoliberal, cujo legado é a exclusão de parcela significativa da população brasileira, em sua maioria negra”. Sua crítica radical ao capitalismo evidencia a lucidez de sua análise do racismo enquanto determinação estrutural deste modo de produção.

O movimento negro contemporâneo tem em Flavinho um de seus maiores expoentes e articuladores. Dedicou décadas de militância à construção do pensamento negro radical de esquerda no Brasil, colocando em prática as lições de Amílcar Cabral, que afirmou: “o primeiro passo da resistência política é juntar o máximo de gente possível para a luta”. Flavinho foi um operário da unidade das organizações negras em torno de uma agenda revolucionária, e nessa tarefa reuniu muitas e muitos para tocar a luta da negra gente.

Em 1995, escreveu o texto de apresentação da edição “Faça a Coisa Certa! O combate ao racismo em movimento”, número especial da revista Teoria e Debate (nº 31), em comemoração ao tricentenário da imortalidade de Zumbi dos Palmares. A apresentação é uma síntese de seu pensamento como intelectual orgânico, com atenção aos principais temas da conjuntura nacional e internacional e à atuação política das organizações negras.

Flavinho identificou, com precisão, “as novas formas de articulação e expressão da militância negra em múltiplos espaços: locais de trabalho, organizações rurais, sindicatos, movimentos populares, partidos políticos, universidades, parlamentos, entidades religiosas, mulheres negras, órgãos governamentais, entre outros”. Como dirigente, não mediu esforços para fortalecer a unidade do movimento negro em toda sua diversidade — um valor que nossa geração deve preservar e cultivar como patrimônio político.

Destaca-se também sua atenção e entusiasmo pelo protagonismo do Movimento de Mulheres Negras. Reconheceu o potencial político e teórico da sua atuação e percebeu “a emergência desse movimento, com identidade própria e caráter nacional”, como resposta necessária à formação racista e patriarcal da sociedade brasileira. Foi entusiasta da presença das mulheres negras brasileiras nos debates nacionais e internacionais, como na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim (1995), que teve entre suas principais figuras a intelectual militante Lélia Gonzalez.

Ao recordar essas declarações, reforçamos um dos valores imprescindíveis na trajetória de Flavinho: o zelo pela unidade e diversidade do movimento negro brasileiro e a construção de uma nova sociedade. Ele acreditava, sem sombra de dúvidas, no poder transformador da militância negra para romper com as estruturas geradoras e reprodutoras de desigualdade.

Nossa geração teve a honra de conviver com Flavinho em momentos decisivos da recente trajetória do Movimento Brasil Popular. A nossa construção é de inteira responsabilidade nossa, mas foi imprescindivelmente marcada pela contribuição de Flavinho. O campo político que fazemos parte desenvolveu a partir do final da década de 90 uma certa ideia de Brasil, sintetizada na ideia de construir um Projeto Popular para o Brasil. Tal projeto viria a ser constituído na contramão das concepções eurocêntricas e se propondo a uma  interpretação consequente da realidade brasileira, resgatando uma série de autores que pensaram criticamente o país. Apesar da importância e originalidade desse período, não estava colocado explicitamente uma concepção antirracista em nossas formulações. Até se pode extrair alguns elementos das formulações de então, mas é um fato que o que tínhamos era muito insuficiente ante a relevância que esta questão tem para a compreensão das particularidades da nossa formação social. E Flavinho contribuiu desde o princípio para superarmos esta limitação, com generosidade, paciência e entusiasmo a cada novo passo dado, contribuindo para para afirmarmos o potencial revolucionário da fusão de raça e classe.

Nessa mesma direção, soube reconhecer imediatamente o potencial de um movimento como o Levante Popular da Juventude para forjar uma práxis negra do campo do Projeto Popular. A nacionalização do Levante, no contexto de ampliação das políticas de ações afirmativas, possibilitou a ampliação da nossa força social, em especial, nas periferias urbanas, tensionando positivamente a nossa construção dar esse salto na elaboração e na prática.

A convivência com Flavinho fez com que tivéssemos oportunidade de conhecer importantes quadros do movimento negro em todo país e ter acesso a memória das principais lutas e personagens que foram completamente invisibilizados e que passamos a conhecer através do seu testemunho e de outros companheiros e companheiras. O compromisso com esta memória é uma responsabilidade política que carregamos como uma tarefa deixada por ele para nós para que as próximas gerações conheçam os que vieram antes de nós e abriram os caminhos que trilhamos hoje.

Esse fio histórico foi fundamental para construção da Escola Nacional Paulo Freire em São Paulo enquanto uma escola de caráter nacional, mas territorializada em São Paulo em um bairro de forte presença negra, território de muitas lideranças da Frente Negra Brasileira e região onde próprio Flavinho viveu e construiu o seu próprio quilombo. Uma das ruas que cerca a Escola é uma rua que homenageia Lino de Pinto Guedes, jornalista, poeta e militante do movimento negro. Flavinho contribuiu ainda com a elaboração que culminou ainda em 2019, no primeiro ano da Escola, na construção do Curso Capitalismo, Racismo e Patriarcado, um curso nacional que reuniu as elaborações práticas e téoricas com militantes de todo país e impulsionaram decisivamente a nossa práxis. Contribuiu diretamente com reflexões sobre nossos referenciais teóricos, pensando o lugar dos(as) intérpretes negros(as) da realidade nacional nos Cursos de Realidade Brasileira (CRB). Dirigente e mestre, sabia escutar com atenção nossas pretensões políticas e admirava nossa disposição de construir unidade na diversidade.  Acompanhou a construção do Movimento Brasil Popular e foi referência decisiva para a criação do Setor Nacional de Igualdade Étnico-Racial, aproximando nossa organização da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN) e da Convergência Negra. Em São Paulo, contribuiu para que essa aproximação se desdobrasse em uma experiência teórica e prática de construção do nosso movimento – a Frente Negra. A Frente Negra impulsionou a militância negra do Movimento Brasil Popular a desenvolver ações de enraizamento territorial, cultural e a consolidar a Casa Luis Gama como mais um espaço de referência e de auto organização negra e popular.

Um ano após sua partida, fazemos memória de sua presença ancestral em movimento, carregando o sentimento revolucionário que nos move:

“Continuidade da tradição de rebeldia e insubmissão iniciada nos quilombos, o povo negro volta a emergir como sujeito político, rompendo o véu e destruindo a invisibilidade que tentaram inutilmente lhe impor.”

Companheiro Camarada Flávio Jorge, presente sempre!